Por João Damião Almeida
Zâmbia. Aquelas seis letras que até então eram apenas imagens toscas no nosso imaginário, materializavam-se à frente dos nossos olhos em formas surpreendentes. E, a cada quilómetro de estrada, este tesouro de África ganhava para nós contornos e a palavra de seis letras novos significados.
Quatro meses depois de sairmos do aeroporto Humberto Delgado, em Lisboa, para levar a(o) Cabo a nossa expedição sudeste-africana por terra, damos por nós a chegar à Zâmbia, o nosso quinto destino africano. Atravessamos o país em poucos dias mas detemo-nos na capital para conhecer um pouco da cultura e da identidade desta nação.
Uma das democracias mais maduras do continente
A Zâmbia conta apenas com cinquenta anos de independência, mas a história deste território é longa e rica, marcada pelas primeiras comunidades de humanos, por migrações Bantu e por civilizações medievais. Sem fronteiras marítimas, o capítulo colonial da antiga Rodésia do Norte começa mais tarde que a dos estados vizinhos, definida pelo projeto da Ferrovia Cabo-Cairo, por mapas (pouco) cor-de-rosa e pela exploração mineira.
A forma do país, recortada e côncava, em amendoim, é vestígio indelével do legado colonial, alheio à diversidade originária. Com o dobro da área da Alemanha, setenta línguas faladas e dezenas de etnias - nenhuma das quais maioritária, - o inglês é língua franca num país com uma unidade que lhe foi imposta.
Nos últimos cem anos, este estado viu-se governado por sociedades internacionais, por governos europeus e autocratas locais. Depois da independência em 1964, e de 27 anos de unipartidarismo, a Zâmbia já viu sete presidentes eleitos e é hoje das democracias mais maturadas do continente.
Uma cidade dual e um refresco com a textura de canja
Foi sobre este mesmo percurso sinuoso e esta herança cultural zambiana que aprendemos durante duas horas no Museu Nacional de História Natural de Lusaka. Saímos já tarde - o sol desaparecia e sabíamos que, nestes países, com ele a vida - mas ainda dá tempo de caminhar até à Igreja Anglicana da Cruz Sagrada, outro principal monumento da cidade.
Uma avenida e vinte minutos separam-nos da catedral e, à semelhança do que acontecera até então, nas últimas dez horas, desde que tínhamos acordado essa manhã num hostel simpático e económico, decidimos caminhar. Apesar do avançar do dia, ainda faz calor. Onde a água canalizada não é potável, é fácil acabar o dia desidratado e compro um maheu a um vendedor ambulante que leva um balde de refrigerantes à cabeça. A bebida à base de milho é fresca e pesada mas surpreende-me com a textura grumosa dos incontáveis pedaços de milho, que aproximam a bebida a uma canja densa.
Ao contrário de outras metrópoles africanas, não vemos pessoas a pedir nas ruas, não somos abordados para comprar qualquer produto ou serviço e parecemos não chamar a atenção com a nossa tez clara. Mesmo não gritando desigualdades a quem visite o seu núcleo por uns dias, sabemos que Lusaka é uma cidade dual, onde a maior parte dos três milhões de população urbana ainda vive em bairros de lata.
Dito isto, Lusaka também é uma cidade cosmopolita e uma das cidades africanas que mais se tem desenvolvido nos últimos anos. É uma cidade de grandes avenidas, com muita gente nas ruas, com jardins e centros de comércio. Vêem-se prédios modernos e marcas de renome mas também edifícios coloniais, bairros étnicos e mercados caóticos. Esta coexistência, que encontrámos na Zâmbia, não tínhamos visto nos últimos cinco mil quilómetros de estrada desta viagem africana.
Uma cidade que adormece cedo
Quando chegamos à Catedral, as portas estão fechadas mas ainda nos é possível espreitar o seu interior moderno, em linhas retas, e admirar esta construção da altura da independência e as composições geométricas de vitrais, enormes e coloridas que ladeiam a nave do templo anglicano.
Cá fora, um jardim amplo permite respirar da urbe. Além das árvores, apenas a bandeira nacional hasteada, com a águia-peixe-africana em voo e as quatro cores: o verde dos recursos naturais, o vermelho da luta pela liberdade do país, o preto das gentes da Zâmbia e o laranja dos recursos minerais.
Já de noite, regressamos ao sudeste da cidade, aos bairros comerciais e industriais, onde tínhamos estado de manhã, à procura de um sítio para jantar qualquer coisa antes de dar por terminado o passeio do nosso último dia na cidade. Horas antes, além dos enormes mercados a céu aberto naquela zona, como o de Comesa ou de Soweto, as ruas e avenidas ali em grelha fervilhavam com animação. As lojas temáticas multiplicam-se: num quarteirão vende-se equipamento fotográfico; depois sistemas de som; ao lado moda feminina; mais à frente cosmética e saúde. Os passeios para circular ficam reduzidos a metade: no chão vendem-se jornais diários, pacotes de internet, fruta da época, pulseiras e acessórios.
Nessa manhã, num espaço de mil metros e sem entrar num centro comercial, comprámos um tripé, provámos insetos, almoçámos salsichas grelhadas típicas e experimentámos kachasu. Este último consiste numa bebida alcoólica caseira que nos explicaram ser destilada através de tudo e mais alguma coisa (incluindo resíduos urbanos e materiais tóxicos), pelo que apenas quisemos examinar o aspeto e cheiro daquele líquido transparente.
Àquela hora, as lojas já estavam fechadas e começava a ser difícil encontrar um restaurante aberto. Não eram ainda sete horas da noite, mas o dia aqui começa e acaba cedo. Um restaurante sul-asiático - como naquela zona havia muitos, - que se preparava para fechar, ainda nos abriu a porta e serviu-nos dois deliciosos shawarmas de frango por 22 kwacha zambianos - pouco mais de um euro.
Satisfeitos, seguimos para o hotel a apanhar as mochilas guardadas na receção e seguimos para a estação de autocarros. O transporte para o nosso próximo destino apenas partirá no dia seguinte cedo, com o raiar do sol, mas é frequente nas estações por onde passamos podermos embarcar várias horas mais cedo e assim pernoitar na viatura. Procuro uma fila vazia por entre os corpos adormecidos deitados nos bancos e estendo-me também eu ao comprido. Deitado nos dois lugares da esquerda, com as pernas suspensas no corredor e os pés no banco mais próximo do lado direito, fecho os olhos e entrego-me ao sono.
Penso que quando acordar estarei a caminho de Livingstone e das Cataratas Vitória. Talvez esteja a ser optimista… Acordarei certamente várias vezes antes do autocarro partir, atrasado, no dia seguinte.
Projeto Prá frente
O Projeto Prá Frente foi criado por dois jovens engenheiros, com a intenção de conhecer (e partilhar) uma perspetiva completa do Sudeste Africano, focando-se não só no seu património deslumbrante, mas também nas suas pessoas e naquilo que tem para oferecer para o futuro.
Para saber mais siga o Instagram: @projeto_prafrente
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