Filipe Diogo e Beatriz Gonçalves, ambos com 29 anos, são enfermeiros e viveram durante sete anos em Inglaterra. Apesar de terem alcançado a realização profissional, a paixão pelas viagens e a vontade de explorar o mundo fizeram com que vendessem tudo, deixassem os empregos e investissem todas as poupanças numa grande aventura - que pode ser seguida através do Instagram @theworldchasers.
"Em vez de investirmos numa casa ou num carro, decidimos investir nas nossas memórias", contam ao SAPO Viagens numa entrevista onde explicam como conseguiram organizar uma viagem desta envergadura, falam sobre as peripécias e os destinos mais marcantes.
Como surgiu a ideia de realizarem esta viagem?
Emigrar para outro país deu-nos a oportunidade de começar a conhecer outros países e culturas. Primeiro, em viagens curtas na Europa e depois através de viagens mais longas e para destinos mais longínquos.
Na nossa primeira viagem à Ásia, neste caso à Tailândia, apaixonamo-nos pela simplicidade e humildade das pessoas, além das grandes diferenças culturais. Começámos a pensar como gostaríamos de explorar mais esta parte do mundo, mas precisaríamos de muito mais tempo para uma imersão total na cultura local.
Queríamos viajar de forma lenta, para ter tempo de conhecer as pessoas e o seu quotidiano, a cultura e as suas tradições.
Obviamente que desde que temos esta paixão por viagens que seguimos as aventuras de outros viajantes, mas tínhamos alguns receios. Principalmente porque a sociedade valoriza demasiado a estabilidade financeira, algo que tínhamos medo de abandonar. Apesar de não nos sentirmos concretizados, tínhamos uma situação financeira e profissional estáveis.
Retornamos ao continente asiático numa viagem independente à Indonésia e, enquanto debatíamos a possibilidade de deixar os nossos trabalhos e vidas estáveis, conhecemos um casal inglês que já se encontrava a viajar há mais de três anos. Sentimos que os nossos receios eram infundados e que este momento foi decisivo para tomarmos esta decisão. Percebemos que o nosso perfil de viajante não era assim tão diferente e que, provavelmente, conseguiríamos sobreviver numa viagem longa.
Qual é o objetivo desta viagem?
Em primeiro lugar, é a proximidade com as pessoas. Mais do que contar países ou sítios visitados, é a conexão com as pessoas e a imersão na sua cultura. Esta viagem é uma total imersão no desconhecido.
É por isso que não prescindimos de andar à boleia, aceitar convites de desconhecidos e ficar a pernoitar nas suas casas. Queremos ver um país pelos olhos dos seus cidadãos, pois acabamos por perceber o seu quotidiano, as suas preocupações e alegrias. Acabamos por seguir as suas rotinas ou mesmo aprender a linguagem local, por exemplo.
Em segundo lugar, é vermos e partilharmos a realidade. Sentimos que o mundo é partilhado de uma forma utópica, recorrendo apenas a duas alternativas. Certos destinos são ilustrados como sendo perfeitos e paradisíacos, enquanto outros são marginalizados e ostracizados por serem, alegadamente, perigosos. Gostaríamos de quebrar preconceitos e perfeccionismo, o mundo é invariavelmente uma forma cinzenta onde coexistem bondade e maldade. Queremos mostrar a realidade de quem lá vive, através dos nossos olhos.
Além disso, é um desafio a que nos propomos, pois estamos cientes das dificuldades.
Da ideia até à concretização, como correu o processo?
Foi um longo processo, até porque, entretanto, tivemos que batalhar contra uma pandemia. Fizemos vários planos que tiveram que ser totalmente reconstruídos. A ideia inicial seria percorrer o caminho mais longo possível de comboio, a partir de Portugal. Contudo, face à conjuntura mundial atual (conflitos bélicos, restrições relacionadas com a pandemia), tivemos que fazer alterações significativas ao plano inicial.
Quando começaram a ser distribuídas as primeiras vacinas, estávamos nós a vender todos os nossos bens materiais (mobília, principalmente). Após dois meses, tínhamos apenas um colchão e uma mesa na cozinha. Posteriormente, tivemos ainda que nos despedir dos nossos postos de trabalho permanentes, entregar a chave ao proprietário do apartamento e fazer as malas para voltar para Portugal.
Tínhamos tudo planeado para sair de Portugal em setembro de 2021, contudo ainda existiam muitas restrições relativamente à COVID-19. Assim adiamos mais um ano, até setembro de 2022.
Aproveitámos o tempo para explorar o interior de Portugal (maioritariamente Beira Interior e Alta), viver algum tempo no interior esquecido do país e aprumar alguns detalhes relacionados com a viagem. Este planeamento foi extremamente detalhado, desde o tempo meteorológico ou equipamento necessário até aos vistos e seguros de viagem.
Em abril, decidimos também casar-nos, ao fim de quase 10 anos juntos. Em menos de três meses planeámos e concretizamos o casamento, da forma que queríamos e sem grande aparato. Saímos de Portugal rumo à Austrália exatamente dois meses depois do casamento, naquele que acreditamos ser um projeto de vida.
Porque é que decidiram fazer todo o percurso sem aviões?
Os aviões são um dos transportes mais poluentes, além de que são também um dos mais caros em viagens de longo curso. Nas nossas viagens de duas ou três semanas à Indonésia ou Tailândia, verificámos que o custo de vida nestes países é baixo comparativamente a Portugal, sendo o preço dos voos um dos maiores gastos orçamentais. Se conseguíssemos ficar mais tempo em viagem, sem recorrer a aviões, acabaríamos por poupar dinheiro.
Além disso, ao ir de avião perdemos a melhor parte da viagem. Afinal, mais do que chegar ao destino, nós queremos aproveitar a viagem em si. As aventuras e peripécias do caminho. As pessoas que conhecemos e os obstáculos que ultrapassamos. Ir de avião tira-nos todas estas peripécias. Podemos não conseguir chegar à Austrália, mas sabemos que já valeu a pena.
Quais têm sido os meios de transportes mais utilizados?
Vale usar qualquer meio de transporte, exceto aviões. Temos recorrido às boleias porque nos permite um contacto mais próximo com as pessoas. Aliás, ir à boleia em carros de desconhecidos já nos permitiu ter experiências fantásticas e conhecer histórias de vida impressionantes.
A maioria das pessoas desaconselha ir à boleia, porque desde a infância que somos incutidos a premissa de que "não devemos falar com estranhos," mas há estranhos que já se tornaram família.
Usámos muitos autocarros, pois são um meio de transporte barato em grande parte da Europa, especialmente para viagens noturnas (o que nos permite poupar dinheiro em alojamento, claro).
Além disso, já usámos comboios e atravessámos fronteiras terrestres a pé. Quando não encontramos alternativas, vamos à boleia ou a pé.
Como tem corrido a viagem?
Estamos há cerca de quatro meses em viagem e o balanço é positivo. Houve países que nos surpreenderam pela positiva, como a Sérvia ou o Irão. Enquanto outros países falharam em nos surpreender, mas já era algo expectável.
Sempre que possível, temos tentado aceitar convites de desconhecidos para ficar hospedados na casa deles, o que nos permite aprofundar o nosso conhecimento sobre a sua cultura e até sobre as suas preocupações ou dificuldades.
Temos refletido bastante sobre a bondade e generosidade humanas. Até porque esta viagem não seria possível sem a ajuda de terceiros. Temos aprendido bastante, a nível pessoal e até profissional. E cada vez mais nos deparamos com pessoas humildes que tentam, até a custo pessoal, ajudar completos desconhecidos a troco de nada.
Contudo, nem tudo é perfeito e viajar neste registo implica abdicar de algum conforto. Aliás, o conforto está no final da nossa lista de prioridades.
A título de exemplo, caminhamos frequentemente vários quilómetros com as mochilas. Nem sempre, quando acordamos, sabemos onde vamos dormir na noite seguinte. Nem sempre temos uma cama para dormir ou uma refeição quente ao fim do dia.
Independentemente do cansaço ou desconforto, sentimos que estamos a construir memórias inigualáveis.
Maiores dificuldades e peripécias pelas quais já passaram?
Muitas mesmo. Já comprámos bilhetes de comboio para a cidade errada (existem três cidades com o mesmo nome em três países diferentes - Sérvia, Bulgária e Rússia) e ficámos presos na fronteira entre a Sérvia e a Bulgária, sem transportes. Mas conseguimos chegar ao destino por ir à boleia com dois camionistas turcos. Atravessámos fronteiras terrestres a pé. Já perdemos as mochilas por várias horas, por confiar na ajuda de desconhecidos.
Ao aceitar convites de estranhos, seja para ir à boleia ou ficar em casa deles, já passámos por situações desconfortáveis, mas aprendemos a confiar nos nossos próprios instintos.
Dificuldades em comunicar em determinados países onde o inglês não é usado de forma comum. Mas esta dificuldade é atenuada pela boa vontade e humildade das pessoas com quem interagimos.
A última peripécia foi a entrada no Irão. Fomos num autocarro desde a cidade de Van, na Turquia, até Tabriz, no Irão. Contudo, depois de vários atrasos, só chegámos a Tabriz de noite. Não tínhamos comida, nem dinheiro local, nem forma de comunicar (sem cartão SIM). Além disso, o autocarro deixou-nos longe do centro da cidade. Só mesmo com a ajuda de estranhos é que não dormimos na rua.
Sítios mais marcantes e porquê?
Talvez as nossas escolhas não sejam das mais consensuais porque ambos estes países não estão (mas deviam estar) no foco turístico europeu ou mesmo mundial.
A Sérvia. Um país que não está no mapa turístico de muitas pessoas, mas onde fomos muito bem acolhidos. Onde as pessoas nos tentaram ajudar mesmo sem falar uma língua comum. Desde pescadores a professores, desde as classes altas ou baixas, sempre nos sentimos bem-vindos.
O Irão. Um país onde a hospitalidade é indescritível. Onde não seria possível viajar sem a ajuda constante de desconhecidos. Onde os convites para chá ou para uma refeição em casa não têm fim. Um país revoltado, mas cuja bondade e humildade são inimagináveis. O povo iraniano é único.
Como fazem a gestão do orçamento e como conseguiram poupar para fazer uma viagem desta envergadura?
A gestão é feita diariamente, sendo que fizemos alguma pesquisa de antemão para perceber o custo de vida em cada país que queremos visitar. Atribuímos um orçamento para cada país e a gestão é feita a partir daí. Contudo, estes valores vão sendo alterados, até porque a inflação que sofremos atualmente faz-se sentir um pouco por todos os países.
A pandemia permitiu-nos poupar algum dinheiro, até porque fomos trabalhando mais durante esse período. Todas essas horas extra tiveram uma repercussão em termos orçamentais. Contudo, não diríamos que este aspeto terá sido fulcral para a concretização do projeto.
Em parte, vendemos todos os nossos bens materiais, o que nos permitiu reaver algum dinheiro. Além disso, usámos todas as nossas poupanças. Em vez de investirmos numa casa ou num carro, decidimos investir nas nossas memórias. Aliás, acabámos por perceber que não precisamos de muito para sobreviver. Diríamos que é uma questão de escolha pessoal, podemos sobreviver sem um telemóvel de última geração, mas não podemos continuar sem viver esta aventura.
Claro que viajamos de uma forma contida, não temos gastos desnecessários e fazemos uma gestão apertada do orçamento. O que poupamos hoje irá permitir manter-nos, quiçá, na estrada durante mais tempo.
Além disso, não excluímos a possibilidade de arranjar pequenos trabalhos ou tarefas durante a viagem, caso necessário.
Próximos destinos e planos.
O plano é extremamente flexível, contudo não existem hoje muitas rotas ou alternativas para chegar a Singapura ou à Indonésia e, posteriormente, à Austrália por terra/mar.
Depois do Irão seguiremos para o Paquistão e a Índia. Gostaríamos de incluir algum voluntariado na viagem, potencialmente já no Paquistão, um país muito afetado pelas alterações climáticas.
No futuro próximo, passaremos também três meses pelo Nepal, onde pretendemos fazer alguns percursos pelos circuitos do Evereste e do Annapurna, novamente sem recorrer a voos.
Conseguimos um visto de um ano para a Índia o que nos dá alguma flexibilidade para visitar esta região do mundo e países como o Sri Lanka, Maldivas ou Bangladesh.
O nosso próximo obstáculo será a ligação entre o subcontinente indiano e o sudoeste asiático, pois o Myanmar impõe algumas restrições pelo conflito armado no país.
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