Opto sempre que possível por viajar de noite, em modelo "cama" ou "semi-cama", poupando assim uma dormida em alojamento mas, acima de tudo, rentabilizando o tempo nas deslocações. No fundo, é acordar numa cidade diferente, pronta para um novo dia.

Com (muito) tempo pela frente e uma distância deveras aceitável, coloco a mochila às costas e sigo caminho pela marginal, ainda a tempo de ver o nascer do sol reflectido no lago. Já há algumas pessoas pelas ruas e o chão, pintado com motivos e imagens locais, lembra-me a Marina da Horta, no Faial.

Inicia-se a mais longa busca pelo pequeno-almoço de que tenho memória, ou não fosse (ainda por cima!) sábado. São 6h da manhã e não há quem forneça uma informação consistente: ora os cafés abrem às 7h, ora às 8h, ora às 9h... E, assim, após algum tempo de espera na Plaza Maior, perante a fachada da Catedral imponente mas ainda encerrada, inicio nova volta totalmente aleatória pelas ruas.

Puno
Puno créditos: Andreia Castro

Puno é uma cidade feia, caótica e pobre. À distância, parece uma favela, tal é o acaso na distribuição das casas de tijolo por pintar. Aqui, os ponchos dão lugar a "polleras", as saias tradicionais das mulheres - coloridas, volumosas e com várias camadas. Cães deambulam pela rua, os ardinas começam a vender os seus jornais e as primeiras lojas (sobretudo, farmácias) começam a abrir. Numa praceta por onde já tinha passado apercebo-me que um casamento começou entretanto; não é cedo nem tarde - entro, sento-me e assisto à cerimónia, com cânticos de Hallelujah (aleluia também para mim que encontrei um lugar quentinho onde sentar e estar entretida!) que alternam com a versão peruana de Sound of Silence, de Simon & Garfunkel.

Puno
Puno créditos: Andreia Castro

Passa das 8h quando tomo o pequeno-almoço, agradavelmente surpreendida com o espaço que encontrei, um café praticamente ocidental e até com pastelaria francesa. De estômago cheio, é tempo de caminhar em direcção ao cais. Numa das ruas onde previamente se montava o mercado, a agitação já é evidente: vende-se fruta, carne, velhíssimos pequenos electrodomésticos que nem para decoração deveriam servir e muitas saias. A tentação é grande, e por 30 soles (cerca de 6 euros), compro uma saia amarela a contrastar com a minha camisola preta.

O Titicaca é a grande atracção de Puno mas também de todas as cidades, vilas ou aldeias na linha costeira deste que é o maior lago da América do Sul. Um lago imenso, tão vasto (8500Km2, 60% maior que o Algarve) que se encontra partilhado com o território boliviano, aqui mesmo ao lado. Diz-se que foi no Titicaca que nasceu o primeiro inca por ordem do Deus Sol, destinado a fundar o império. Diz-se também que o lago tem a forma de um puma, animal sagrado para os incas. Parecenças ou não, a verdade é que a paisagem é bonita, avistando-se canaviais extensos, aves e um leito esverdeado na sua superfície que é rasgado pela passagem das embarcações.

Titicaca
Titicaca créditos: Andreia Castro
Titicaca
Titicaca créditos: Andreia Castro

Se há aspecto curioso sobre o Lago Tititaca, este deve-se, sobretudo, ao facto de na sua superfície terem sido desenvolvidas manualmente cerca de 120 ilhas flutuantes apoiadas em níveis de canas que têm de ser "recicladas" a cada 15-30 dias, por forma a combater o desgaste do solo orgânico. Nelas residem várias comunidades da etnia Uros, totalizando cerca de duas mil pessoas que vivem da pesca, artesanato ou hotelaria.

É difícil conceber a idealização e construção de ilhas totalmente flutuantes de raiz, com tão poucos recursos. A história tem demonstrado que sempre existiu a sede de marcação e/ou conquista de território, seja em terra ou no mar - como são exemplo recente os complexos hoteleiros megalómanos no Dubai. A história local conta que inicialmente os Uros por forma a não serem escravizados viviam no meio dos canaviais, escondendo-se e abrigando-se em pequenas embarcações e que mais tarde terão desenvolvido a técnica de construção das ilhas, que chegam a "sobreviver" até 30 anos. Um conceito estranho... mas há tanto de estranho quanto de maravilhoso no mundo!

Ilhas flutuantes do Titicaca
Ilhas flutuantes do Titicaca créditos: Andreia Castro
Ilhas flutuantes do Titicaca
Ilhas flutuantes do Titicaca créditos: Andreia Castro

Hora de regressar a Puno, onde me resta uma última tarefa para este dia, antes de rumar a Arequipa. Caminhando pelas ruas, de chapéu e saia amarela, apercebo-me de que as mulheres (e não só!) olham curiosas e esboçam largos sorrisos. A minha "pollera", que já se tinha tornado fonte de interesse nas ilhas flutuantes com peruanos a fazerem fila para se fotografarem comigo, tinha-se tornado um autêntico quebra gelo também na cidade. Uma banda toca ao longe e, entrando no espírito que está deveras mais leve com toda esta abertura, aproximo-me com piruetas dançantes apercebendo-me depois de que se trata da Tuna Médica. Cores iguais (preto e amarelo), profissão idêntica e uma obra do destino que me levou a estar no sítio certo, à hora certa com os meus semelhantes. Uma tradição igual, a milhares e milhares de quilómetros de distância.

Tuna Médica
Tuna Médica créditos: Andreia Castro

Encontro a vendedora ainda na mesma rua, que se alegra a ver-me chegar - e também eu tão alegre que vinha com a sua saia. Dispo-a e devolvo-lha para que a possa vender novamente a outra pessoa, pois sabia de antemão no momento em que a comprei que não a poderia transportar comigo. Entrego-a perante um olhar incrédulo e abandono o local deixando-lhe um olhar feliz. Passo uma última vez pela Tuna a caminho da estação de autocarros... e ainda dizem que não há coincidências.

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