Foto: A bordo do Transiberiano
A maioria dos “viajantes profissionais” que conheço tem uma história de vida impressionante. Muitos deles ainda eram crianças e já faziam as malas para grandes epopeias com as famílias. Já eu vim de uma família que nunca foi de férias. As minhas viagens começavam todas na “carreira” de Marvila para o Terreiro do Paço, de onde a partir daí o meu avô me levava a dar a volta ao mundo sem sair de Lisboa. Corríamos os transportes todos: o metro, o cacilheiro, o elétrico, o comboio – ainda me recordo dos comboios com portas de fole e bancos corridos em madeira, os antigos apeadeiros da Linha de Sintra e os comboios “expresso” que apenas paravam nas estações principais! Da Linha de Sintra à estação de Pyongyang, na Coreia do Norte, foi um pulinho.
Licenciei-me em Inglaterra, onde conheci as low cost (que na altura ainda não existiam em Portugal). Pelo mesmo preço que o comboio me levava de Bristol a Londres, um avião levava-me de Bristol a Budapeste. Passei a ser uma estudante full-time com outros dois empregos: um para pagar os estudos, e o outro para pagar as viagens.
No fim da licenciatura, ganhei uma bolsa de estudos que me levou de Inglaterra para a Holanda, onde fiz a minha pós-graduação. Aprendi uma nova língua, acomodei-me na cidade das bicicletas, e continuei a viajar, agora tirando partido da bolsa, dos descontos de estudante e de não estar mais numa ilha, e viajei de comboio Europa fora. Por esta altura tive o meu primeiro trabalho na área das viagens: escrever e fotografar, e contar na primeira pessoa como eram as minhas escapadinhas pela Europa. A companhia era uma start-up madrilena, e o budget era generoso pois eram pioneiros no conceito de partilhar artigos de opinião e não jornalistas convencionais nem recorrer a imagens de banco. Numa era em que ainda não havia Instagram nem hashtags, esta plataforma digital antevia o futuro das “redes sociais”.
Findos os estudos, acabei por regressar a casa. Apesar de tudo, uma “carreira” só em viagens parecia-me ainda uma utopia de criança. Consolidei o meu trabalho na área da Fotografia, deixando passar ao lado a nova cultura de viajantes e influencers, que a substituir os velhinhos fóruns online, passou a ditar o ritmo das viagens. Desvendaram-se segredos, e passou a haver como que uma sede de “ser” – o importante, passou a ser o “aparecer” em vez do “estar”.
Cansada de viver em cenários e grandes produções fotográficas, abandonei o meu trabalho, vendi o carro, aluguei a casa, e desfiz-me de tudo o que eu pensava não precisar. Comprei um bilhete só de ida, e nunca mais voltei (definitivamente). Há muitos milhares de dias que vivo sem morada fixa, toda a minha roupa cabe numa só mala, e vivo apenas de coisas essenciais. Já são mais de três anos na pele de “viajante profissional”.
Como sobreviver financeiramente neste ritmo é das perguntas que mais me colocam: disciplina financeira é a regra mais importante. Separar percentagens de todos os ganhos, perceber de micro-investimentos, dominar a ginástica das contas poupança. No meu caso, deixei de aceitar propostas de trabalho que não me façam sentido / não vão de encontro aos meus princípios e motivações, e aposto por vezes na troca-justa e colaborações / parcerias.
Gosto de viajar por sítios pouco procurados, e faço disso o meu nicho. A minha atitude transparente e o interesse em conhecer locais estigmatizados, climas friorentos e culturas remotas definem o meu trabalho. Já perdi a conta das vezes que fiz o Transiberiano de Moscovo a Pequim, o país de que tenho mais vistos é a Mongólia, as histórias que me trouxeram mais audiência foram da Coreia do Norte e o sonho que tenho tentado concretizar por fases é o de caminhar toda a Grande Muralha da China. À fotografia, juntei trabalhos de consultoria e líder de viagens. A partilha é a base de todas as minhas viagens, e o contar histórias passou a ser a motivação do conhecimento.
Viajar tornou-se mais que a minha profissão, tornou-se a minha razão de viver. A era digital trouxe oportunidades infinitas para que muitos apaixonados por viagens se possam profissionalizar nesta vida utópica. Basta só ter a audácia de conseguir largar tudo... e partir.
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