O projeto de reabilitação bebeu do misticismo e espanto que a edificação provoca a quem a visita, explica o arquiteto autor do trabalho. “Durante dias em que estive na capela, pude presenciar visitantes que se prostravam, que se ajoelhavam, faziam orações, mesmo alguns que não eram religiosos admiravam a imponência do local”, conta o arquiteto Muahammad Cássimo à Lusa.
“Eles sentiam o peso” da história da ilha de Moçambique, uma cidade insular da província nortenha de Nampula, ligada a terra apenas por uma ponte, e que foi o primeiro local de colonização do país pelos portugueses.
Foi numa noite estrelada de luar que pensou que “com uma luz discreta, amarela”, a capela ganharia um entorno à altura das reações dos visitantes, num ambiente que passaria a estar acessível durante visitas noturnas.
A iluminação está prevista, orçamentada e vai ser uma realidade. Além disso, a capela de Nossa Senhora do Baluarte ostenta várias características raras, capazes de provocar espanto.
É a construção de alvenaria mais antiga de toda a costa africana do oceano Índico, mais antigo edifício europeu hoje de pé, assente num banco de coral, mesmo à beira do mar (numa das marés vivas de 2021, as ondas cobriam-na, conta o guia) e nasceu mesmo antes de ser construída a fortaleza da ilha de Moçambique, que mais parece um gigante ao seu lado.
O edifício resistiu a ataques contra a armada portuguesa, venceu ciclones, mas agora tem a base esventrada por cinco séculos de marés e o esqueleto corroído pelo salitre, impregnado pelo vento.
Os governos de Portugal e Moçambique e a construtora Mota Engil assinaram em fevereiro um memorando de entendimento para a reabilitação que deverá arrancar em maio.
“Um dos maiores problemas são as falhas no baseamento”, cuja muralha “foi descomposta”, deixando a sustentação ameaçada por “buracos que chegam a três metros” de profundidade, por onde as ondas entram e tiram os aterros, ficando as pedras sem suporte.
No limite, se nada se fizesse, parte da capela podia colapsar nas ondas.
Mas o restauro da base mostra como o trabalho vai ter várias peculiaridades: naquela secção só vai ser possível trabalhar com a maré baixa e com cuidados acrescidos.
Além disso, na capela, “há elementos arquitetónicos que podíamos até chamar de arqueológicos” e para a recuperação dos quais se requer a presença de especialistas moçambicanos e portugueses, como é o caso de um túmulo emparedado que foi vandalizado.
“Aqui há 12 túmulos, todos de pessoas importantes”, explica Momade Raisse, guia da fortaleza de São Sebastião e da capela de Nossa Senhora do Baluarte.
Aponta para alguns e vai recitando as descrições com que recebe os visitantes: “um bispo sepultado em 1588”, um “governador-geral do século XIX” e um outro túmulo “que não conseguimos distinguir, porque a escrita desapareceu há muito tempo”.
Todos os dias, das 08:30 às 16:30, é possível visitar a capela, mas é aos fins-de-semana que as visitas costumam aparecer, descreve à Lusa.
Raisse não sabe quando é que ali houve uma missa pela última vez, mas o misticismo persiste e já houve visitantes a deixar dinheiro na pedra do altar, como num ofertório, apesar de o interior estar igualmente despido, corroído e manchado pela humidade.
O guia tem cuidado onde põe os pés na zona do “nártex”, ou seja, numa espécie de alpendre largo cuja cobertura ruiu faz tempo, à entrada da capela, no mesmo sítio onde permanece o resto de um púlpito e de uma parede, cuja pedra parece ter sido trazida de Portugal.
“Todas as decisões no projeto de recuperação foram pensadas para dar maior durabilidade” à capela, explica Muhammad Cássimo, que espera que as “gerações vindouras” reforcem os cuidados de manutenção de um património histórico valioso e com forte potencial de atração turística.
“Estamos a introduzir algumas técnicas, porque não sabemos se vamos ter outra oportunidade destas” no âmbito dos trabalhos de recuperação, destacou à Lusa.
Por exemplo, a argamassa do reboco vai ser preparada para durar mais tempo e estão previstos tampos móveis para evitar a entrada da água durante marés vivas.
Os ciclones que sempre fizeram parte da costa moçambicana estão agora “mais frequentes” e o projeto reforça essa resistência às intempéries, acrescentou.
O arquiteto e a capela são velhos conhecidos.
Muhammad Cássimo, 38 anos, é natural da Ilha de Moçambique e só saiu da província para se formar em arquitetura, uma via escolhida porque desde miúdo brincava entre ruínas de edifícios – a Ilha foi declarada Património Mundial da Humanidade pela UNESCO em 1991 e a fortaleza e a capela são só dois dos vários edifícios classificados.
“A minha meta: quando mais casas reabilitar, melhor. Quando acabei o curso, voltei”, conta à Lusa, um regresso em que acompanhou o arquiteto José Forjaz na reabilitação da capela em 1997.
Já ali passou muitas horas, diz que até mapeou fissuras que depois viu crescer e tornarem-se fendas bem visíveis.
“Já fiz viagens noturnas” e os navegadores de ‘dhow’ - embarcação à vela da região - dizem que a capela iluminada “vai facilitar-lhes a vida”, sobretudo em dias de mar agitado e quando na ilha não há energia.
A requalificação vai reavivar a função de vigia no acesso ao mar alto que há 500 anos fez com que a contruíssem no extremo norte da ilha (que haveria de ser a primeira capital de Moçambique), encavalitada sobre pedras de coral, à espreita da rota da Índia.
Comentários