Por João Damião Almeida (fotografia acima da Ilha de Goa)

Em 2017 a crise humanitária estalou em Cabo Delgado, com o início de uma série de ataques terroristas que já tiraram a vida a milhares de moçambicanos e originaram quase um milhão de desalojados. Nunca mais os anos lhe deram tréguas. Em 2019 os ciclones Idai e Kenneth afetaram milhões de norte-moçambicanos. Em 2020 o COVID-19 matou qualquer réstia de turismo e foi novo entrave ao investimento bilionário messiânico de extração de gás natural.

Entretanto, a guerra não parou. Estabelecidas as tropas nacionais, ruandesas e da SADC, continua a viver-se uma guerra surda onde os ataques são raros e o medo de regressar às terras abandonadas ainda reina. Apesar do conflito estar bem delimitado, o desconhecimento e zelo excessivo das entidades diplomáticas responsáveis - que tendem a agrupar o norte do país num todo - continua a pressionar as muitas vidas que dependem do turismo naquela região. As tramas políticas adensam-se quando a guerra se move sobre uma mina de meticais na forma de gás natural.

Neste tempo fui conhecer a região: a realidade adversa dos que lá nasceram e o desafio dos que lá trabalham na reconstrução do desenvolvimento e da dignidade humanos. Tive a oportunidade de acompanhar uma das organizações que opera nestas províncias, a HELPO, criada há 10 anos por jovens portugueses.

O que encontrei naquela terra, além de fome de paz e de estabilidade, foi o encanto destes destinos a pedirem para serem redescobertos.

A baía de Pemba

Erguida à entrada de uma das maiores e mais belas baías naturais do mundo, Pemba parece ter sido a primeira a escolher o seu lugar no mundo. Com o pretexto de proteger a entrada da baía, roubou para si o melhor recanto. Península estreita e recortada, ali o difícil é fugir de ver o mar.

As praias sucedem-se umas a seguir às outras como que numa competição pelas melhores vistas em que os vencedores saímos nós. Os tons do Índico infinito multiplicam-se em azuis impossíveis de contar.

No extremo da península, a antiga cidade de Porto Amélia transporta-nos aos tempos em que terá sido erguida, e desde os quais pouca obra parece ter sido feita. Apesar de degradada, é possível aqui ver as residências no estilo colonial, os edifícios públicos (só) aparentemente abandonados e uma ou outra igreja em traços arrojadas que coexistem com os mercados de rua, com a música e com a agitação do presente. No limite da língua de terra, num banco de areia a beijar o Índico, o bairro de Paquitequete é o mais antigo da cidade. Os tons de metal e matope (lama utilizada para construir as casas mais humildes) por entre as palmeiras ganham tons dourados ao pôr-do-sol. O bairro solta música e fumo enquanto vai entardecendo. Nos últimos anos, com os fluxos migratórios de refugiados, aquela areia tornou-se a casa de muitos.

Ponte para Paquitequete
Ponte para Paquitequete Ponte para Paquitequete. créditos: Projeto Prá Frente

Como diamante embrutecido, Pemba tem sede de se reinventar. O potencial natural privilegiado consegue destoar da falta de zelo paisagístico. Os espaços de convívio parecem limitar-se à zona da costa. A rua central, com o seu mercado matinal e as muitas lojas disto e daquilo, acaba por fazer lembrar qualquer outra cidade africana. Os grandes hotéis coloniais deram lugar a um grande empreendimento chinês que também já não aloja turistas, mas residentes temporários. Saindo da via principal, o alcatrão dá lugar a crateras que a chuva só piora.

Mas junto à costa, ao pôr do sol, as esplanadas enchem-se. Pede-se cerveja, marisco e conversa. Vêem-se europeus mas hoje em dia não estão de passagem. O turismo abandonou aquela terra há tempo para dar lugar a organizações internacionais de ajuda humanitária. São os agentes que, no terreno, conseguem levar as boas intenções do mundo a bom porto. Distribuem as “calamidades” (pacotes de ajuda a famílias vítimas de catástrofes naturais), alimentos básicos mas também roupa e material escolar aos refugiados e nos subúrbios rurais. Constroem escolas e levam educação aos milhares que ali se multiplicam. Acompanham as famílias, os indivíduos: sabem os seus nomes e as necessidades de cada um.

De Cabo Delgado a Nampula

Parto para quatro dias a descobrir o interior em 400 quilómetros de estrada. No caminho ainda me detenho em vilas grandes e pequenas. Parto curioso com o que aqui vou encontrar: o território guarda segredos que as cidades só imaginam.

Desloco-me sempre em viatura privada e conduzido por quem aqui vive. No desenho daquela viagem, esta travessia pelas províncias de Cabo Delgado e Nampula poderia ser considerada o momento de maior imprevisibilidade. Rapidamente me tranquilizam: os conflitos estão bem localizados e mais a norte, no limite com a Tanzânia.

É uma guerra difícil esta. Os jovens que saem das suas vilas para o médio Oriente e voltam radicalizados não trazem uma guerra aberta. Regressam às populações, espalham insurgência e apregoam radicalização. A violência é esporádica, mas brutal. Contam-nos que no dia em que dez funcionários anónimos faltam ao trabalho na fábrica, ocorre um ataque na vila: saem sete decapitados, todas as casas queimadas. A população vai fugindo com medo, para Pemba ou outra grande cidade. É-lhes pedido que regressem mas ainda não há confiança.

É uma guerra difícil esta, mas hoje em dia mais controlada. Já lá vão cinco anos desde os primeiros ataques e a maioria dos jihadistas já foi identificada. Alguns, dizem-nos poucos, escondem-se nas florestas, são recebidos noutra povoação e o ciclo não tem fim à vista.

De vez em quando somos parados pela polícia. Trocam-se perguntas gerais mas rapidamente nos deixam seguir. "Há dois anos teriam aberto a mala e revistado o carro" explicam-me.

As estradas estão em boas condições e os quilómetros vão-se sucedendo, tranquilos. Somos frequentemente surpreendidos com paisagens lindíssimas da natureza virgem. Espalhadas pela planície verde, irrompem montes solitários ou rochedos desmedidos com formas que nos plantam lembranças. Chamam-se inselberg, nome alemão para montanha-ilha, e parecem ter sido erguidas por gigantes para nos guiar na planície.

A viagem faz-se em vários dias. Paramos para visitar algumas comunidades nos arredores de Pemba e de Nacala, para conhecer as escolas ali erguidas e os milhares de alunos que cada uma leva. Paramos para conhecer a vila interior do Chiúre e para visitar uma minha familiar octogenária que para ali foi viver há sessenta anos. Aproveitamos para viver a tradição macua, sentir o passo rural e saborear as rotinas locais, mais distintas das do sulista Maputo que das da Tanzânia e do Malawi, ali próximos.

A Ilha de Moçambique

O último destino da rota norte-moçambicana foi um dos sítios mais especiais que já pisei. Com apenas cerca de um quilómetro quadrado, a Ilha reúne arquitetura colonial, cultura e oportunidades balneares, além de restauração e artesanato excelsos, num leque de motivos de interesse, vasto para vários dias.

Ilha de Moçambique
Ilha de Moçambique Ilha de Moçambique. créditos: Projeto Prá Frente

Separada da costa por uma estreita ponte de quatro quilómetros e a uma hora da cidade mais próxima, chegar até à Ilha não é difícil e é até peregrinação necessária na preparação do espírito para o templo em que se entra.

A Ilha, que guarda só e para toda ela o único grande título UNESCO do país, foi capital de Moçambique durante quase 400 anos, antes da transferência para Lourenço Marques. Encerra nela duas metades distintas e esta divisão não é apenas figurativa. Ao chegarem à ilha, os portugueses utilizaram a pedra que nascia da metade sul da ilha para erguer a fortaleza e as habitações no norte. Hoje em dia, encontramos a norte a "cidade de pedra e cal" colonial e abaixo a "cidade de Macúti" (material de construção à base de folhas de coqueiro), de habitações humildes em lama e capim, que se acumulam sobre o chão escavado, afundando-o ainda mais.

Uma manhã é suficiente para dar calmamente uma volta à ilha, mas são precisos dias para a descobrir. A cidade de pedra e cal reúne belos edifícios do tempo colonial, desde igrejas, um hospital, armazéns e oficinas, habitações para as mais altas patentes da altura, tudo em tons de pastel, numa ruína harmoniosa e que nos faz recuar no tempo. Ao nos perdermos nestas ruas, encontramos também o jardim de memória que lembra o comércio de escravos tão ligado àquela terra, a casa onde Luís de Camões terá vivido e terminado a sua epopeia, ou o museu da Ilha, sobre a história secular daquela antiga capital. Encontramos ainda um templo hindu, várias mesquitas e cemitérios antigos. Contam a história de uma terra de viajantes e de séculos de crenças.

Cemitério na ilha de Moçambique
Cemitério na ilha de Moçambique Cemitério na ilha de Moçambique. créditos: Projeto Prá Frente

Mas a jóia da Ilha será mesmo a Fortaleza de São Sebastião, de tal ordem é a grandeza da fortificação e que ainda hoje alberga um pólo universitário, a capela mais antiga do hemisfério, e um labirinto de jardins, salas e corredores muralhados onde nos podemos perder horas sem fim.

Da Ilha sai-se também de barco para os ilhéus à volta. Desde logo a ilha de Goa, com o seu farol secular e a ilha de Sete Paus, cujas margens guardam corais e segredos de náufragos antigos. A maré naquelas águas faz transformar a paisagem. Quando a água baixa uns metros, recua umas centenas. Trocam-se os barcos pelas pernas e os pescadores correm para as águas a apanhar o espólio de crustáceos frescos e missangas esquecidas.

Nos bairros de Macúti vive a grande maioria dos cerca de 15.000 habitantes da cidade insular. Os tons secos da terra e do coqueiro lembram o ouro de Paquitequete e a vista sobre os telhados é de uma beleza inesperada. Mas sabemos que nem sempre é dourada a vida ali. Numa cova abaixo do nível do mar ao seu lado, as chuvas intensas e frequentes quase sempre significam destrutivas inundações. Os ciclones cada vez mais frequentes deixam Macúti irreconhecível e tão depressa como foi destruído, os macuas erguem-no de novo.

A Ilha de Moçambique é capital mas é aldeia. É turismo mas é vivência. É pedra e cal e é macuti. É minúscula e é tão grande.

Um mês antes da minha visita, o ciclone Gombe havia devastado a Ilha (ou metade dela) e os seus estragos ainda eram visíveis. Desde árvores arrancadas a casas horizontalizadas. Ainda assim, a vila não tinha esperado por mim para se reerguer. Também aqui é notório o incansaço das instituições internacionais, que conheci, e cujos esforços se desdobram e multiplicam para responder aos desafios que mesmo em outras zonas do país são impensáveis.

Em 2022 viajei dez dias às províncias de Nampula e Cabo Delgado. O Norte de Moçambique guarda alguns dos maiores tesouros do país. É terra com fome de paz. Encanto que quer ser redescoberto. Memória que se sonha futuro.

Projeto Prá frente

O Projeto Prá Frente foi criado por dois jovens engenheiros, com a intenção de conhecer (e partilhar) uma perspetiva completa do Sudeste Africano, focando-se não só no seu património deslumbrante, mas também nas suas pessoas e naquilo que tem para oferecer para o futuro.

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