Durante 33 dias, e ao longo de quase 800 quilómetros, entre a comuna francesa de Saint-Jean-Pied-de-Port, nos Pirenéus, e Santiago de Compostela, em Espanha, a agência Lusa, de mochila às costas, contactou com a realidade e conheceu as adversidades de quem percorre o ‘camiño’.
Seja por motivos religiosos, espirituais, culturais ou simplesmente pela experiência, desafio, lazer, desporto ou turismo, o Caminho Francês de Santiago atrai cada vez mais peregrinos (e caminhantes) e, por isso mesmo, tornou-se num apetecível filão comercial a explorar.
Provenientes de todos os continentes, os peregrinos percorrem os trilhos unidos pelo objetivo comum de chegar a Santiago, muitas das vezes sem conseguir explicar o motivo que os move e com a única certeza de que o ‘caminõ’ não se descreve, vive-se.
No entanto, a tranquilidade inerente do ‘desligar’ da rotina e mergulhar numa experiência transcendente com a natureza, história e religião está a ser comprometida pela multidão que percorre o Caminho Francês, neste período de pós-pandemia.
No Alto del Perdón, a chegar a Puente la Reina, em Navarra, e na Cruz de Ferro, à saída de Foncebadón, em León - dois dos lugares em Espanha mais emblemáticos do Caminho Francês - os peregrinos fazem fila e esperam pela sua vez para tirar fotografias ou orar.
Na última década, tendo em conta todos os caminhos com destino a Santiago de Compostela, os peregrinos duplicaram, de 215.879 para 437.511, para o que muito contribuiu o facto de 2022 ter sido considerado, excecionalmente, Ano Santo (Jacobeu).
Com a crescente procura, surgem inesperados problemas de logística para os peregrinos, que passam por momentos de stress e ansiedade para arranjar cama nos albergues municipais e privados, estes últimos quase sempre lotados com muita antecedência, o que obrigam à adoção de medidas drásticas.
Para garantir uma vaga num albergue municipal de lotação reduzida, dos muitos que servem pequenas localidades ao longo do trajeto, e que fazem a admissão por ordem de chegada, o peregrino está obrigado a madrugar (04:00 ou 5:00) e a manter passo acelerado.
“Isto é inacreditável. Nunca pensei que procurar onde dormir fosse a principal preocupação do dia. Assim, nem dá para usufruir tranquilamente do caminho”, admitiu o catalão Juan, de 71 anos, com 22 trajetos concluídos e tentado a regressar mais cedo a casa.
Os peregrinos deparam-se ainda, em alguns locais, com a ausência de albergues municipais e com a escassez de camas nos privados ou nos das instituições religiosas, o que, na maior parte das vezes, obriga a procurar outro local e a um acréscimo de quilómetros na tirada.
“Tentei reservar, mas não consegui. Os albergues estão cheios e só havia 15 vagas num [em Hornillos del Camino] e, como não cheguei a tempo, tive que caminhar mais sete quilómetros”, referiu o francês Jean Nöel, na casa dos 70, que estava a caminhar há mais de um mês desde Besançon, em França.
O desengonçado australiano Rod, de 54 anos, admitiu mesmo que “gostaria de ter parado mais vezes ao longo de algumas etapas, para desfrutar do momento e conviver”, mas não o fez porque “tinha receio de já não apanhar cama nos albergues de destino”.
A crescente procura do caminho francês, percorrido no último ano por 226.447 peregrinos, incentiva, também, o aparecimento de negócios paralelos, como o transporte de mochilas, bancas de venda de bens essenciais e lavandarias, quase sempre com preços inflacionados.
Para minimizar a despesa com a lavandaria, um serviço que é essencial e apenas utilizado em situações de recurso, quando a lavagem à mão da pouca roupa que transportam não é suficiente, os peregrinos optam por partilhar as máquinas de lavar.
Outras despesas são, no entanto, impossíveis de contornar, como as relacionadas com a alimentação, visitas a monumentos e igrejas, mesmo beneficiando de algum desconto para peregrinos munidos com a respetiva credencial.
Uma simples banana, fruto que é tido como um alimento completo, rico em potássio, vitaminas, fibras e minerais, essencial na dieta de quem caminha vários quilómetros por dia, pode custar, ao longo do ‘camiño’, um euro e cinquenta cêntimos.
Uma garrafa de água de 1,5 litros pode custar mais cinquenta cêntimos se estiver fresca, uma bebida energética, que num supermercado custa um euro, pode chegar aos 2,50 euros e lavar a roupa na máquina (nos albergues) vai dos dois aos quatro euros.
Os cafés ao longo da rota, muitas vezes sem concorrência em quilómetros, disponibilizam, a maior parte das vezes, serviços de qualidade duvidosa, mas praticam preços de tabela de restaurante ‘gourmet’. Com o aproximar de Santiago o euro ‘desvaloriza’.
O transporte de mochilas por empresas especializadas custa entre quatro e seis euros, e até os correios de Espanha já entraram no negócio, mas há quem considere que este serviço, que alivia o peso dos ombros dos peregrinos, desvirtua o sentido do ‘camiño’.
Alguns albergues recusam a receção das mochilas transportadas por essas empresas e outros proibiram a entrada de ‘trolleys’ (malas rijas com rodinhas), seja pelo barulho ou pelo objetivo de proteger a essência dos caminhos, contrariando a carga turística e a sua banalização.
No diálogo possível com Kim Téo, através de um aplicativo de tradução automática no telemóvel, o sul-coreano defende que “o transporte de mochilas deve ser um recurso, em situações de dificuldade, e não uma prática habitual”.
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