Bilhete-postal por Pedro Neves
As primeiras chuvas de setembro fazem os dias quentes do verão parecer subitamente mais longínquos, mas foi só há duas semanas que me propus a percorrer a Baixa lisboeta para ter um gosto da experiência de percorrer a principal zona turística da cidade durante o pico do calor.
Comecei a minha caminhada pela rua da Prata, onde a cabeça de uma vaca espreitava do interior de uma loja o lento progresso das obras em torno do buraco que se abriu ali no final do ano passado. “É minha, é tua, é de toda a gente”, lê-se num cartaz afixado nas vedações que rodeiam a zona sob intervenção. As mesas de esplanada a estorvar a única calçada transitável comprovam-no.
O desleixo com o espaço público volta a ficar à vista uns metros à frente, no cruzamento com a rua da Conceição, onde os semáforos intermitentes parecem autorizar a indiferença dos automobilistas aos sucessivos grupos de turistas que esperam atravessar a via. Quem trabalha no local diz já ter alertado "várias vezes" a câmara municipal para a situação, sem resultados.
Chegamos à Praça do Comércio, onde o sol do meio-dia parece um atirador furtivo, a caçar lá do alto as suas vítimas. Alguns turistas circulam pelo espaço, mas o maior grupo refugiava-se na sombra cada vez mais diminuta da estátua de D. José I, no centro do terreiro. Perto do Cais das Colunas, só um cão e um gato feitos de areia pareciam estar imunes à torreira do sol.
Voltamos a procurar o refúgio da sombra no labirinto da Baixa, onde o efeito da hora de almoço já se fazia sentir, com muita gente a decifrar cardápios ou a seguir direções no telemóvel para o restaurante eleito. A única coisa a destacar-se era mesmo a quantidade de carros clássicos ao serviço de excursões turísticas. Elétricos e silenciosos, pareciam ao mesmo tempo sinais do passado e produtos inevitáveis do presente.
A grande surpresa, todavia, estava reservada para a rua da Madalena, ao avistar, pelo canto do olho, um tigre branco em movimento. Não era golpe de calor, era mesmo de marketing, no caso, de um tuk-tuk que circula pela cidade com um peluche em tamanho real da espécie ameaçada no tejadilho. A visão é desconcertante e até algo triste (segundo o Zoo de Lisboa, o tigre-branco atualmente já não existe em estado selvagem), mas não há dúvidas de que se destaca no fluxo constante de viaturas turísticas.
O calor é intenso, mas a curiosidade era mais forte: como estaria a fila para o Castelo de São Jorge? Mesmo à hora de almoço, a resposta era a previsível: grande. Ainda assim, estes visitantes, quase todos jovens com ar de quem acabou de sair do duche, ainda pareciam os mais animados. Na rua do Chão da Feira, onde ficam as paragens dos autocarros que conduzem ao monumento, impressionava o ar geral de derrota de quem já tinha passado pelo castelo e estava agora de regresso ao centro da cidade, com idosos e mesmo casais jovens visivelmente abatidos pelo calor e cansaço.
Mais abaixo, no Largo do Contador Mor, o maior aglomerado de pessoas contava a sua própria história: cerca de uma dezena de pessoas esperava a sua vez para se reabastecer de água num dos bebedouros ali existentes.
Pouco depois, no Miradouro de Santa Luzia, podíamos acreditar ter acabado de tropeçar numa aula prática ao ar livre sobre o uso de redes sociais. Algumas dezenas de pessoas gravavam vídeos em movimento e tiravam selfies junto à famosa buganvília cor-de-rosa encostada à Igreja no local, enquanto a vista para o Tejo era dominado pelo Anthem of the Seas, um pequeno arranha-céus na horizontal.
Nas imediações da agitação, um canteiro de rosas exposto ao sol passava quase despercebido. As rosas, de um vermelho vivo, pareciam impassíveis face ao calor e ao aparente descuido do resto da Praça Júlio de Castilho, o nome deste espaço. De trás de um banco, aqui e acolá, as flores espinhosas espreitavam dos arbustos em redor como se estivessem à conversa umas com as outras, a trocar impressões sobre quem passava.
A última paragem neste périplo pelo coração de Lisboa é a mais difícil de fazer com a temperatura já acima dos 35 graus: a Graça. Uma vez lá chegado, o cansaço dá lugar à surpresa pela grande novidade deste passeio: a cidade está prestes a ganhar mais um funicular. Quando lá passei, a obra ainda decorria, mas as notícias dão conta de que o novo equipamento deverá ser operado pela Carris e entrar em funcionamento este mês. No fundo da encosta, o pequeno elevador já estava pintado no tom de amarelo da transportadora lisboeta.
Tudo o que sobe precisa de descer, e isso é especialmente verdade no caso da Graça. Depois de passar no escritório, tempo ainda para espreitar a zona ribeirinha ao final do dia. A Ribeira das Naus e o Cais do Sodré concentravam o maior número de pessoas a aproveitar a retirada do calor e a vista do Tejo. “É meu, é teu, é de toda a gente” também podia servir para este rio de prata.
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