Bilhete-postal por Pedro Neves
O Parque Florestal de Monsanto (PFM) é um oásis da Natureza que serve de habitat a mais de mil espécies de flora e fauna, incluindo cerca de 250 mil árvores, qualquer coisa como um milhar de brincalhões esquilos-vermelhos e meia dúzia de águias-de-asa-redonda. Com 900 hectares, trata-se do maior espaço verde de Lisboa, impossível de ficar a conhecer num só passeio. Ou será mesmo?
Feitos extraordinários inspiram-nos a ir mais longe e a minha volta ao "pulmão verde" da capital deve muito a algo que aconteceu a mais de 900 quilómetros de distância. Em dezembro do ano passado, contávamos aqui como a Mayra Santos se propôs ser a primeira pessoa a dar uma volta a nado à ilha de Porto Santo, na Madeira. A atleta de águas abertas viria a descrever, com uma beleza exata, a sua façanha de 10 horas como um "abraço" à ilha dourada. A palavra ficou comigo e daí semeou o meu plano de realizar um gesto similar em relação ao parque lisboeta.
Fascinou-me a possibilidade de dar uma dimensão humana a um lugar tão grande quanto Porto Santo e isso levou-me a pensar que talvez pudesse fazer o mesmo com a ilha de natureza que Lisboa viu nascer no seu interior há exatamente 90 anos neste dia, com a promulgação do decreto-lei que criou o Parque Florestal de Monsanto.
Hoje é difícil de imaginar a Serra de Monsanto sem árvores, mas era assim que se apresentava em 1934, quando o Estado Novo, e o seu ministro das Obras Públicas, Duarte Pacheco, decidiu avançar com a ideia antiga de voltar a arborizar esta parte de Lisboa (com o ponto mais alto do concelho, a 227 metros de altitude), após séculos como zona de cultivo.
O meu plano era similar ao da Mayra, ainda que muito menos desafiante do ponto de vista físico, e consistia em dar uma volta a pé pelo perímetro inteiro de Monsanto, tentando abraçar o máximo possível da sua mancha verde. Na ausência de um trilho oficial, tive de ser criativo e desenhar o meu próprio, usando percursos pedestres e ruas que permitissem contornar a floresta, mas evitando passagens perigosas (e ilegais) pelas vias rápidas que a atravessam.
A distância total? Sensivelmente 30 quilómetros, quase os mesmos percorridos a nado pela Mayra Santos em Porto Santo — uma coincidência que liga, mais uma vez, a ideia à sua inspiração (mesmo que a minha caminhada só tenha levado 6 horas a completar).
a principal impressão com que fiquei da minha caminhada é a de um parque cada vez mais insulado pelas vias rodoviárias à sua volta
Escolhi um dia ameno de maio para realizar a caminhada, com partida às 06h30 no Parque do Calhau, em Campolide. É um dos meus lugares preferidos de Monsanto devido à forma como revela no seu interior uma amostra do montado alentejano, com vários sobreiros e azinheiras espalhados por um amplo prado. É o sítio ideal para procurar um refúgio dos enganos e atropelos da vida citadina, ainda que ao fim-de-semana seja muito procurado para piqueniques e festas de aniversário ao ar livre.
Apesar de pretender seguir o perímetro exterior de Monsanto, pouco depois de passar pelo bairro da Serafina já caminhava em direção ao seu interior. O motivo? A autoestrada que atravessa e divide o território do parque em duas metades, uma a norte e outra a sul.
A A5 representa um corte brutal na continuidade desta mancha florestal e um enorme obstáculo para quem, como eu, siga pela sua vertente oriental. Em 2021, no contexto de uma exposição dedicada à evolução do PFM, a Câmara Municipal de Lisboa reconheceu a cissura e revelou ter planos para construir duas "ecopontes" a Oeste e Este deste eixo rodoviário, mas é algo que parece estar ainda longe de ser concretizado.
De resto, a Autoestrada da Costa do Estoril não é o único obstáculo do mesmo género. A principal impressão com que fiquei da minha caminhada em maio é a de um parque cada vez mais insulado pelas vias rodoviárias que foram construídas à sua volta ao longo dos anos, da CRIL à Radial de Benfica, passando pela 2ª Circular e Eixo Norte-Sul.
O problema da acessibilidade parece ser mais sentido a Oeste e Norte do Parque. Um caminhante que se aproxime por aí precisará de estudar bem o mapa para conseguir navegar o emaranhado de estradas que tem de atravessar. Em Oeiras e na Amadora, mesmo para quem avista Monsanto da sua casa, a tranquilidade verde deste espaço parece estar demasiado longe para se alcançar facilmente a pé.
Durante a minha volta, o exemplo mais flagrante dessa dificuldade nos acessos ocorreu em Alfragide, onde precisei de fazer um desvio de quase quatro quilómetros pelo interior da zona comercial desta freguesia de Oeiras para conseguir retomar o meu percurso sem atravessar vias rápidas. Mesmo depois de tudo isso ainda me restava fazer os 50 metros mais perigosos do meu trilho inusitado: circular pela berma de uma saída da CRIL, para poder começar a contornar o Parque de Campismo de Monsanto.
Pouco depois das 14h, chegava novamente ao Parque do Calhau, completando o meu “abraço” simbólico a Monsanto. De acordo com a aplicação de GPS que usei, percorri uma distância de 31,65km ao longo de 5h57m (com uma pausa a meio para almoçar da minha marmita).
Foi curioso passar boa parte de um dia primaveril a caminhar nesta linha de fronteira entre cidade e Natureza, entre dois territórios que me são familiares mas raramente vistos assim, ainda que algumas das minhas partes preferidas do Parque tenham, necessariamente, ficado de fora deste roteiro periférico, como a panorâmica Alameda Keil do Amaral (assim designada em homenagem ao responsável pelo projeto de arquitetura das primeiras infraestruturas construídas no Parque) ou a sempre enigmática Tapada da Ajuda.
90 anos depois, apesar da pressão imobiliária que cresce em seu redor e de um certo esquecimento a que parece ter sido votado, Monsanto é uma parte imprescindível de Lisboa. Poucas capitais do mundo colocam à disposição dos seus habitantes um refúgio ecológico tão vasto e complexo como este, onde podem contactar com a Natureza e desfrutar, mesmo sem o saberem, dos seus benefícios para o bem-estar e saúde.
Uma volta completa a Monsanto não substitui um passeio pelo seu interior (e há pelo menos sete percursos pedestres à escolha para quem o pretenda explorar), mas não deixa de ser uma forma interessante de medir (com os pés) a verdadeira dimensão deste pulmão de Lisboa. Como a Mayra mostrou, vale a pena abraçar quem, ou aquilo, que nos faz bem.
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