Não há nada como um salto no vazio para chamar a atenção de uma multidão. As cabeças viraram-se todas para a ponte Luís I, abaixo da qual era possível ver pequenas explosões à superfície das águas esverdeadas do Douro.
Percebi que era o momento de largar a esplanada em Gaia e, finalmente, assistir de perto a esse espetáculo estival de elenco rotativo garantido pelos miúdos da Ribeira.
Quando me aproximei, encontrei uma dúzia de rapazes adolescentes agarrados ao lado de fora da ponte, a ganharem coragem à vez de saltarem para o refresco do rio. Apesar do calor dessa tarde de maio, notava-se nos seus gestos e olhares (e pelo terço na boca de um deles) que ainda havia espaço para a hesitação: a queda é de 12 metros (mais dois que a plataforma usada na prova olímpica de saltos ornamentais), podendo variar de acordo com a maré.
Os mais veteranos identificam-se por subirem à estrutura metálica que rodeia o tabuleiro (que acrescenta mais dois metros à sua proeza aérea) e serem os primeiros a desafiarem a gravidade. Vistos pela lente de uma câmara, e imobilizados no ar por um obturador, os atletas desta tarde parecem quase sempre cair atabalhoadamente, sem a destreza ou acrobacia dos seus congéneres olímpicos.
estes miúdos tiram óbvio deleite em serem o centro das atenções numa competição que só eles podem disputar
Na bolha turística que é a zona ribeirinha entre o Porto e Vila Nova de Gaia, estes miúdos tiram óbvio deleite em serem o centro das atenções numa competição que só eles podem disputar. Numa cidade cada vez mais esvaziada de moradores, rostos e rotinas familiares, a prova de emancipação também pode ser encarada como uma afirmação de domínio.
A forma como vituperam as embarcações turísticas que passam demasiado perto da sua zona de saltos (mais perto da margem portuense) mostra isso mesmo: ali, são eles a mandar. Mas nem sempre. Este ex-líbris do Porto e Gaia tem sido palco recentemente de vários atrevimentos. Em abril, um grupo de adeptos de slackline cruzou ali o Douro numa corda erguida entre as duas cidades. E há poucos dias, um escalador polaco partilhou imagens da forma como escalou, sem usar qualquer equipamento de segurança, a ponte do século XIX.
E eu, saltava? A resposta, do alto dos meus quarenta anos, varia consoante a perspetiva. Vista da ponte, paradoxalmente, parece tratar-se de uma altura aceitável (ao instinto de auto-preservação). Vistos de qualquer outro ponto de vista, todavia, a queda de dois segundos parece alongar-se no tempo e no espaço de forma pouco aconselhável (não seria o primeiro a magoar-me seriamente ali em resultado de uma queda mal controlada).
Depois de dez saltos e mais de 100 disparos com a câmara, preparo-me para deixar a Ribeira quando passa por mim um dos miúdos da ponte. Aproveito para lhe perguntar se o impacto na água é doloroso, mas responde-me que ainda está a aguardar coragem para saltar. Outro dos miúdos nas imediações percebe o meu interesse e chega-se, de peito cheio, à frente: "Eu saltei!".
"O que custa mesmo é o chão quente", atira enquanto vira costas, descalço.
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