Bilhete-postal por Rui Pereira
O objetivo
Não tinha quaisquer objetivos de caráter competitivo. Tempos, registos, recordes… nada. Apenas dar a volta à ilha com a bicicleta, tendo um fim-de-semana para o efeito. Dois dias para mim. Para me desafiar e superar com algo maior do que o habitual. Para me relacionar apenas com a bicicleta, a estrada e os meus pensamentos. Para fazer aquilo que mais gosto – pedalar.
A ideia surgiu de um processo evolutivo que partiu de três experiências bem-sucedidas, que envolveram a bicicleta de carreto fixo e três das nossas lagoas mais conhecidas — Furnas, Fogo e Sete Cidades. A volta à ilha seria o evento maior, o coroar de sucesso desta série de desafios.
A bicicleta
Podia simplesmente levar uma bicicleta de estrada, mais leve e eficaz, e com as velocidades todas, mas não seria a mesma coisa. A fixed-gear era o ingrediente certo para tornar a volta ainda mais desafiante e especial. Ou não tivesse apenas uma velocidade e uns pedais que não param sempre que a bicicleta estiver em movimento.
A Ilha
São Miguel é a maior ilha dos Açores. Para dar a volta é contar com mais ou menos 200km de muito sobe e desce ao estilo montanha russa. Para além disso, é a mais bonita e tem umas estradas excelentes para percorrer de bicicleta. Sim, sou suspeito.
A preparação
Há mais de um ano que tinha tudo idealizado. Ligação Rabo de Peixe-Povoação-Rabo de Peixe, no sentido contrário aos ponteiros do relógio. Estadia no Hotel do Mar (Povoação). O transporte de tudo o que fosse necessário levar (roupa, ferramentas, alimentação, água, etc.) seria feito numa mochila.
Não se pode dizer que tenha feito uma preparação física específica para esta aventura, mas, nas semanas que antecederam o evento, saí de bicicleta mais do que é habitual e fiz um par de “reconhecimentos”, um deles de maior duração.
A determinação
Na sequência da minha ida anterior às Furnas, escrevi: “As limitações físicas contam, mas as psicológicas determinam.”
No caso, aplica-se e de que maneira. Claro que é necessário ter um mínimo de preparação física para fazer uma volta desta dimensão, mas a preparação psicológica para o efeito, onde se inclui o gosto e a motivação, são indispensáveis. E neste campo, estava totalmente disponível. Sozinho e, também por isso, ciente das dificuldades que teria pela frente, estive sempre tranquilo e muito confiante.
O primeiro dia
O mais longo, mas não necessariamente o mais duro. Com o tempo a colaborar e perante uma parte inicial (lado oeste da ilha) essencialmente rolante, optei por um ritmo calmo. Com algum receio do que tinha pela frente, decidi preservar-me.
Cheguei a Ponta Delgada à hora certa para o almoço. Tinha à minha espera o troço Vila Franca-Furnas. Até disfarça, mas sobe, sobe e depois sobe mais um bocadinho, para depois descer tudo e entrar na famosa calçada da Lagoa das Furnas. Até desfoca a visão. Mas o meu destino era a Vila de Povoação, portanto, não arrefecer para a subida e aguentar na descida – é a história desta volta. Numa bicicleta convencional as descidas são um alívio, numa bicicleta de carreto fixo… é isso mesmo, aguenta. Banho de mar, jantar e deitar cedo que havia mais para pedalar.
O dia correu bem e cheguei todo animado. Nos meus devaneios, pensei: “Ah, se calhar até dava para fazer tudo num dia. Havia de acabar de noite.” Sim?!… Estou?!… Santa ignorância. Mal sabia o que tinha pela frente!
O segundo dia
Montei a bicicleta de barriga cheia e senti o vento fresco de noroeste. Nem deu para aquecer, para cima é que é caminho em direção ao Nordeste. Já bem quentinho e ofegante cruzei uma das partes mais incríveis do percurso (da entrada para o Faial da Terra até à Pedreira). Uma estrada larga, para a nossa realidade, com duas faixas de rodagem e muito pouco trânsito. Um traçado lindo e uma envolvência com a natureza fantástica. Uma calma e um silêncio dignos de registo. Só, mas deslumbrado e tão bem integrado naquele quadro real, onde por momentos fui protagonista. De tal forma que me fez esquecer as dificuldades. O cenário idílico mudou um bocado com a entrada nas freguesias, até porque era um desce e sobe terrível. Aquele carrossel do costume, mas ao qual nunca nos habituamos.
“Despe-te que Suas”, local de nome bastante peculiar e revelador, foi o ponto mais crítico. Parei já perto do topo da subida ficando atravessado na faixa de rodagem. Respirei fundo e tentei perceber se valia a pena fazer o resto montado… virei para baixo para ganhar balanço e dei meia volta para continuar a subir.
Esta aventura, que apelidei de SMG FIXED ’22 - Volta à Ilha de São Miguel em Bicicleta de Carreto Fixo, encerra em si um contra-senso curioso – foi dura e tranquila ao mesmo tempo. Foi um excelente exercício de gestão do esforço e a prova de que a atitude com que se encara os desafios faz toda a diferença. A par disso, o cuidado ao nível da hidratação e da alimentação fez com que o sofrimento implícito nunca fosse para lá do aceitável.
O estado do tempo, algo sempre a ter em conta para quem vive no meio do Atlântico, podia ter condicionado bastante a sua concretização, mas até nisso tive sorte.
Não tenho registos de aplicações, com dados e mapas todos bonitinhos para apresentar, mas o que interessa é que superei orgulhosamente este desafio. Uma aventura pioneira e inesquecível, aos comandos de uma das minhas bicicletas preferidas, que ficará para sempre guardada na minha memória.
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