O nome Cachão da Valeira é capaz de dizer pouco à maioria dos passageiros que hoje em dia percorrem de comboio as paisagens do Alto Douro. Não é apeadeiro ou estação, nem sequer povoado, e a característica que explica o seu nome (uma enorme queda d'água) já não existe, mas se falarmos numa parede monumental de pedra, é possível que se comecem a acender algumas luzes. Trata-se de um dos locais mais impressionantes da linha ferroviária, mas foi, outrora, também um dos obstáculos mais formidáveis à navegabilidade do Douro e à comercialização do vinho do Porto.
Poucos minutos depois de deixarmos a estação do Tua, em direção ao Pocinho, e de atravessarmos um longo túnel ferroviário, o comboio emerge numa garganta de pedra que parece ter sido esculpida apenas pelas águas do Douro. Trata-se de uma geografia tão portentosa quanto difícil de fotografar: a margem direita do rio só deixa espaço para os carris da linha ferroviária, pelo que a paisagem precisa de ser apreciada (ou registada) nos poucos minutos que o comboio leva a percorrer esta parte do caminho.
É o género de local que parece entrar pelos olhos e se torna reconhecível mesmo passados mais de 200 anos, como descobri recentemente, ao visitar o Museu da 1ª Demarcação, em Vila Nova de Gaia, onde estão expostas duas curiosas pinturas que retratam as obras de destruição do Cachão.
A dura empreitada coube à Real Companhia Velha, uma das mais antigas empresas portuguesas, criada em 10 de setembro de 1756 por iniciativa do Marquês de Pombal, com o objetivo de valorizar e proteger a produção e comercialização do vinho do Porto.
A navegabilidade no rio Douro tornou-se uma prioridade na segunda metade do século XVIII, com o crescimento da importância do vinho do Porto para a economia nacional, e o obstáculo mais difícil de "roer" foi, precisamente, o Cachão da Valeira, cuja cascata atormentou durante muito tempo os marinheiros durienses.
Não era para menos: o estrangulamento do rio naquele local fazia precipitar as águas de uma altura de 7 metros, um perigo mortal para qualquer embarcação que fosse apanhada pela rápida corrente ali gerada.
A primeira tentativa para destruir o Cachão da Valeira remonta ao século XVII, mas é preciso esperar por 1780 para que uma empreitada liderada por um padre e um engenheiro leve a melhor sobre a Natureza. Terão sido precisos "mais de 4.300 tiros" abaixo da linha de água para conseguir desalojar a obstrução rochosa e alargar o leito do rio em 35 pés. Uma década depois, a obra era dada como concluída.
As pinturas de João Baptista Ribeiro, realizadas em 1810, e expostas no museu dedicado à Real Companhia Velha, mostram o antes e depois da destruição do Cachão da Valeira (também conhecido por Cachão de São Salvador da Pesqueira), permitindo a navegabilidade do Douro até à fronteira com Espanha. Na altura, o comércio do vinho do Porto foi o maior beneficiário desta intervenção, com os barcos rabelos a assegurarem, de forma ininterrupta, o seu transporte das vinhas do Douro até às caves de Vila Nova de Gaia.
Mesmo após a remoção da queda d'água, todavia, o local continuou a ser conhecido pela sua perigosidade. Foi o que aconteceu em 12 de maio de 1861, por exemplo, quando um barco rabelo descia o Douro, com origem na Quinta do Vesúvio e partiu-se em dois ao ser arrastado pela tremenda força do rio, resultando na morte de várias pessoas a bordo, entre as quais, o famoso Barão Forrester, um enólogo, cartógrafo e empresário britânico estabelecido em Portugal que se tornara uma das figuras mais influentes do seu tempo no meio duriense (vale a pena ler aqui a reconstituição histórica, por Joel Cleto, da tragédia).
Hoje, além dos quadros no museu vila-novense, o único vestígio que resta do Adamastor duriense (domado entretanto pela construção da Barragem da Valeira, algumas centenas de metros a jusante) é uma placa alusiva aos trabalhos ali realizados, afixada numa das fragas do extinto Cachão (só visível para os barcos de recreio que ainda navegam aquela parte do rio).
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