Bilhete-postal enviado por Paula Gramacho
O choque cultural foi muito grande, mas a felicidade das pessoas era maior ainda. Todos os luxos a que estamos habituados no nosso dia-a-dia, não existem naquela realidade. E, mesmo assim, senti muito mais alegria no ar que sinto aqui, à minha volta.
As peripécias foram muitas, como seria de esperar numa viagem de mochila às costas e cobertor na mão, porque o frio era muito mais difícil de suportar do que eu esperava. Quem diria que faz mais frio na América Latina do que alguma vez senti na Europa? Bem, talvez o problema é que não fui preparada. Nem para o frio, nem para tudo o que encontrei.
Esta viagem foi feita por impulso, sem planeamento, sem saber quase nada sobre o país. Não vi fotografias, não vi mapas, alinhei nos planos com os meus colegas porque sabíamos que era possível chegar lá de autocarro e assim foi. Partimos à total aventura.
O primeiro choque foi quando, a meio da viagem, em pleno deserto, o autocarro parou e uma pessoa saiu. Pensei que a pessoa devia estar indisposta, mas vi o autocarro arrancar e a pessoa ficar no meio do autêntico deserto. Vi-a a caminhar em direção a alguma coisa, algo que no campo de visão não existia, no campo de visão não havia uma única casa. A verdade é que essa pessoa estava a ir para a sua. Não consigo imaginar quão longe seria.
Comecei a pensar para onde estaria eu a ir, afinal. Foram várias horas de caminho no meio do deserto e eu estava desesperada por ver casas, aldeias, pessoas, coisas que se assemelhassem a alguma estrutura. Mas a civilização que eu esperava tardava a chegar. Já não tinha posição no autocarro, tudo me doía, de tanto estar sentada. De repente, sinto um solavanco no autocarro e sinto-o a abrandar. Acabou por parar. Como assim, parar, no meio do deserto? Sim, no meio do deserto.
Os passageiros saíram do autocarro e o problema estava revelado: estava a haver uma manifestação e os manifestantes estavam a bloquear o caminho, sem deixar os autocarros passar. Esperem, estamos no deserto. Não há sequer estradas. Não há sequer caminhos. É um deserto, livre, vazio! Se o autocarro não pode seguir em frente, não pode simplesmente dar a volta aos manifestantes? Não há estrada, é só arrancar!
Estávamos num deserto de gelo, estava a escurecer. Estava tanto frio que dentro do autocarro havia gelo perto das janelas. Sim, gelo! Eu estava enrolada em cobertores e mesmo assim não estava a conseguir suportar o frio. Como é que os manifestantes estavam lá fora com aquele frio?
Estava a escurecer. Entretanto ficou de noite. Os autocarros continuaram parados perante os manifestantes que não os deixavam passar. Um dos meus colegas tinha pago um bilhete barato que significava ir em pé, sem lugar sentado. Não podia nem imaginar que passaríamos ali a noite. Sem sítio onde se sentar ou deitar e sem forma de se aquecer, cheguei a ver esse colega chorar de sofrimento. Aprendi a lição: nunca ir de pé em viagens de autocarro de 36 horas na América Latina.
Acabámos efetivamente por passar a noite dentro do autocarro. Não sei como conseguimos dormir com aquele frio. Mas mais do que isso, não sei como é que se fazem manifestações num deserto de gelo. E como é que os autocarros não contornam a manifestação, simplesmente. Nunca soube a razão daquela manifestação, mas aprendi que em alguns locais, não se contornam manifestações. Se calhar somos nós que estamos mal habituados!
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