É meio-dia e meia em ponto na Lagoa das Furnas, um vulcão adormecido desde 1630. O ronronar da lama quente forma pequenos poços efervescentes, fumegantes, em volta dos quais se acumulam a esta hora centenas de turistas à espera do grande momento. Nenhum deles sabe bem o que vai acontecer a seguir. Duarte Martins espera. É ele o responsável pela ‘gestão’ de um ritual com dezenas de anos na Lagoa das Furnas. Religiosamente, abre o primeiro buraco cavado na terra e dele faz sair uma enorme panela perante o aplauso ruidoso dos presentes. No interior da panela, está o famoso cozido das furnas, o prato mais famoso da gastronomia açoriana.
Tudo foi preparado na noite anterior. Na panela dormiram as carnes de vaca, porco e galinha, as hortaliças, a cebola e o alho, as morcelas e os chouriços. Ingredientes sempre em quantidades significativas à medida do número de fregueses à mesa. Depois, pelas seis da manhã, alguém leva o panelão até às margens fumegantes da lagoa onde o recipiente fica enterrado durante seis horas, a uma temperatura de 84 graus. Particulares e restaurantes ocupam algumas dezenas de buracos cavados na terra quente. Os restaurantes pagam2,5€, os singulares 3€ e os que vão apenas assistir, pagam meio euro.
“Este cozido tem um sabor único”, diz Paulo Costa, jovem chef do restaurante “Caldeiras e Vulcões”, um dos mais populares nas Furnas. “Os ingredientes cozem lentamente, sem água na panela, apenas com o calor da terra. As carnes ficam com uma textura fantástica e o paladar é diferente”.
Esta prática terá começado por motivos económicos, para poupar em lenha ou carvão, há muitas dezenas de anos. Muitos dos habitantes das Furnas tinham buracos cavados no próprio quintal (alguns ainda hoje têm) e começaram a aproveitar o calor da terra para cozinhar. Nem só o cozido, muitos outros alimentos também: o bacalhau, a feijoada ou as caldeiradas, tudo seguia o mesmo processo.
Ana Costa, mãe do chef Paulo, ainda se lembra do tempo em que não havia panelas: “Embrulhavam-se os ingredientes todos num lençol de linho, cobria-se o lençol com um oleado e ia tudo assim, directo para o buraco. O vapor da terra tratava do resto”.
A gastronomia tem sido uma das alavancas do turismo açoriano, agora a crescer a ritmo sustentado. Por todas as ilhas, velhas práticas artesanais e tradições culinárias nunca esquecidas, estão agora a ser trabalhadas por jovens chefs de cozinha em restaurantes e hotéis de design elegante e moderno, integrados em paisagens verdes e azuis que parecem pintadas.
Como o QB - Food Court, em Angra do Heroísmo, ilha Terceira, na freguesia de São Carlos, uma pitoresca zona onde, no passado, os habitantes com mais posses foram construindo vivendas de veraneio. Neste restaurante manda o chef Paulo Lourenço, 32 anos e curso tirado já na Escola de Cozinha da Praia da Vitória. “Os nossos pratos refletem o melhor que existe nos Açores. Peixe fresco, carne dos animais criados na ilha, saladas preparadas com dezenas de folhas diferentes. Tudo biológico!”.
A cozinha não pára durante toda a noite para servir dois espaços distintos: um mais informal, com ofertas mais rápidas; outro, no primeiro piso, mais requintado, com uma carta diferenciada”. A criatividade nota-se em pratos como o creme de abóbora e espuma de queijo de São Jorge; o pargo grelhado com brás de camarão, palha de batata-doce, planta do gelo e salada Bio; ou a veja com açorda de ovas e amêijoas de São Jorge”.
Outro caso de inovação, adaptando os valores da tradição aos novos tempos, vamos encontrá-lo na Quinta dos Açores, uma marca que hoje se estende por áreas que vão desde a criação de gado, até ao comércio de carne e laticínios ou a um moderno restaurante onde são trabalhados os produtos da quinta.
Francisco Barcelos há 40 anos que se dedica à criação de bovinos. Importou vacas da Alemanha, renovou os pastos, dedicou tempo à inseminação artificial dos animais: “O meu sonho sempre foi transformar o que fazíamos na quinta”.
Hoje, em conjunto com as três filhas, vê o seu objectivo concretizar-se: na sua unidade industrial desmancha e embala carne a vácuo, produz leite, iogurtes, requeijão e gelados, dispõe de um mercado que vende produtos regionais, seus e de outros produtores, e gere ainda um restaurante: “Queremos que os consumidores tenham contacto com quem produz”, conta Diana Barcelos, a filha mais velha. E ela que gere este espaço amplo e moderno, com uma cozinha criativa a preços convidativos, e onde vamos encontrar pratos como a salada de carne dos Açores, a 6,2€ - um misto de folhas com laminado de carne, mistura de feijões, pimentos e cebola picada e lascas de queijo Morião, produzido na casa - ou o hambúrguer da Quinta com queijo, a 6,5€ – 100% carne bovina com queijo da Quinta sobre cebola caramelizada e redução de ananás, batata-doce, mandioca e salada.
A produção biológica, ligada à nova cozinha dos Açores, é uma das saídas de futuro para os agricultores da região onde existem já 50 produtores certificados nesta área. Basta uma visita aos mercados para perceber a dinâmica em volta dos produtos das ilhas, quase sempre trabalhados de forma artesanal. Vamos aqui ao Mercado da Graça bem no centro de Ponta Delgada, nas traseiras do Convento e da Igreja da Graça.
Vamos falar com Mário de Sousa, o Rei dos Ananases. Vende aqui há mais de dez anos, "nos dias em que o negócio corre bem posso vender cem ananases". Hoje, o quilo está a 2,99€.
Ao lado do Rei do Ananás está, claro, o Rei dos Queijos! Mário Bernardo é um dos três funcionários que não têm mãos a medir do lado de dentro do balcão. Os queijos produzidos na ilha vão saindo a um ritmo constante desta pequena mercearia que faz porta com o mercado. Estão à venda mais de 40 variedades de queijos, entre os quais estão os das Furnas (normal, meia-cura, com orégãos e com tomilho e alho). Os maiores são os de São Jorge, os mais vendidos dos Açores.
Saltamos dos queijos para os peixes e o cenário de abundância não muda. Hélio Filipe e Milton Moniz ocupam uma bancada no mercado recheada de espécies diferentes, todas pescadas nas águas das ilhas. Hoje temos lulas, garoupas, bocas negras, abróteas, gorazes, chernes, pampos, serras, pargos, tainhas, cântaros, vejas, julianas, moreias, chicharros e canecos. Impressionante!
Ouvem-se agora as doze badaladas do meio-dia. Na baixa de Ponta Delgada, centenas de turistas que chegaram durante a noite num cruzeiro, estendem-se pelas esplanadas com as suas roupas coloridas. Hoje foi apenas um, mas há dias em que podem estar três navios destes, ao mesmo tempo, no porto da cidade.
É hora de almoço. Na antiga rua da Calheta, 7, agora rua Engº José Cordeiro, vamos encontrar um dos mais típicos restaurantes da ilha, o Sardinha ou Mané Cigano, o nome por que é conhecido o seu proprietário, aqui estabelecido faz 53 anos. Vamos encontrá-lo aos comandos de uma frigideira enorme, de óleo bem quente, onde frita diariamente os pequenos carapaus frescos (chicharros, aqui na ilha, jaquinzinhos no continente) que tornam obrigatória uma visita a este pequeno restaurante. No prato, explica, "vão acompanhados por feijão assado (depois de guisado, o feijão vai ao forno num tabuleiro), cebola curtida, batata cozida e pimenta da terra". Há outros pratos na ementa – como o polvo guisado, a moreia frita ou o arroz de lapas -, todos a 6€ a dose, mas os clientes que enchem a sala quase sempre optam pelos chicharros fritos.
Nem só os naturais das ilhas ou profissionais idos do continente estão envolvidos em novos projectos ligados ao turismo. Um pouco por todo o lado, há sinais do investimento de muitos estrangeiros na economia local. Não apenas um investimento financeiro, mas também de afectos e de paixão por uma região cuja beleza conquista corações em qualquer parte do mundo. Como Pavél Kiselev, um jovem russo de 30 anos. Trabalhava em Moscovo numa empresa petrolífera, veio ao Pico fazer mergulho com a mulher e acabaram a abrir um restaurante em Agosto passado, o Casa Âncora, em São Roque do Pico, mesmo junto ao mar.
“Corremos o mundo, eu e a minha mulher, a fazer mergulho. Quando viemos ao Pico, decidimos que era aqui que queríamos viver. E ficámos!”, diz Pavél. Com ele veio o conhecido chef russo Timur Aburiazov, que o ajudou a desenhar a carta e se mantém como consultor do restaurante a partir de Moscovo com visitas regulares ao Pico: “A nossa proposta é utilizar produtos locais com uma nova visão”. Exemplos? Ceviche de lula com batata-doce, língua tenra de vaca com couve flor ou gelado com licor do Pico, noz e hortelã. E mergulhos? “Agora, posso mergulhar nas águas do Pico sempre que quero!”.
A equipa de reportagem da FoodandTravel viajou até aos Açores com o apoio da SATA
Artigo originalmente publicado na revista FoodandTravel Portugal
Comentários