É a maior região geográfica de Portugal, mas a sua densidade populacional é um quinto da densidade média do país, e esta amplidão de espaços desabitados é tão maior quanto mais nos aproximamos da fronteira com Espanha. Felizmente, falta de gente não é sinónimo de falta de lugares interessantes, e a pequena fatia do Alentejo que hoje vos proponho visitar é uma prova disso. Se o mood for passar um fim-de-semana longe da confusão, comer bem e descobrir locais quase secretos e meio misteriosos, este é o roteiro ideal. Vamos passear?
Dia 1: Vila do Redondo
Com raízes pré-históricas e foral concedido no séc. XIV por D. Dinis, que terá ordenado a construção do castelo que ainda hoje existe (as origens do castelo estão envoltas em dúvidas), a vila do Redondo exemplifica bem aquilo que esperamos de uma povoação alentejana: casas caiadas, com barras em amarelo ou azul, baixas e bem alinhadas; ruas calcetadas com pedra negra; igrejas e capelas simples; o branco que reflecte o sol e dá a impressão de que está tudo lavado de fresco; o sossego. E é aqui que começamos este nosso passeio.
Na Praça da República, o piso de calçada portuguesa desdobra-se em padrões geométricos, rodeado por edifícios institucionais – Câmara, Tribunal, Conservatória – casas meio apalaçadas, um fontanário antigo e o Museu Regional do Vinho, que funciona também como posto de turismo e loja. O museu expõe, como é óbvio, objectos e instrumentos agrícolas ligados à vitivinicultura, reproduzindo as várias fases de uma das actividades mais importantes desta região.
Mas o verdadeiro coração da vila não é esta Praça, antes está algumas ruas ao lado, na Praça Dom Dinis. É aqui que fica a Porta do Sol, aberta nas muralhas para dar passagem à rua do Castello (na sua grafia antiga, tal como escrita nos azulejos cravados na parede), de um lado a Igreja Matriz e do outro a torre sineira, provavelmente o postal mais conhecido do Redondo. No extremo oposto da rua, outra imagem icónica, esta porque ilustra uma marca de vinhos sobejamente conhecida no nosso país: a Porta da Ravessa. Um terceiro acesso ao interior das muralhas faz-se pela escadaria junto à Torre de Menagem – que, curiosamente, é redonda na sua face exterior.
A olaria é um dos produtos artesanais mais famosos do Redondo. Em tempos, o concelho chegou a ter 40 olarias em funcionamento, hoje não chegam a uma dezena. A preservação da memória e a valorização desta actividade levaram à criação em 2009 do Museu do Barro, instalado no Convento de Santo António, monumento religioso seiscentista mandado edificar pelo 5º Conde de Redondo e que foi local importante de romaria até meados do séc. XX. Além do espaço expositivo, o museu organiza workshops e visitas às olarias da região.
De dois em dois anos, em fins de Julho e inícios de Agosto, a vila do Redondo é palco de animação excepcional, o acontecimento a que simplesmente chamam Ruas Floridas. As ruas são decoradas pelos seus moradores com flores e objectos feitos de papel colorido, segundo um plano que é decidido e começado a preparar muitos meses antes. As origens deste evento tradicional remontam a meados do séc. XVIII, nas festas populares que eram dedicadas à padroeira da vila, Nossa Senhora de Ao Pé da Cruz. O cariz essencialmente religioso desapareceu mas as festas continuaram, agora abrilhantadas por espectáculos musicais, animações de rua, exposições e actividades afins.
Com cerca de uma vintena de restaurantes, o Redondo é também o sítio ideal para experimentar os pratos típicos da gastronomia alentejana: as açordas e as afamadas migas, as sopas de tomate ou de cação, ou ainda as de feijão com poejos e bacalhau, que são o prato tradicional das quartas-feiras de cinzas no Redondo; e também as bochechas com vinho tinto, a mais popularizada carne de porco à alentejana, ou uns sempre bem vindos ovos mexidos com farinheira.
Terena
Terena é a próxima paragem. Esta vila pequena e muito antiga – o primeiro foral data do século XIII – parece dividida em duas. Uma parte mais recente, plana, com umas quantas ruas desenhadas a régua e esquadro, casas perfiladas de ambos os lados, maioritariamente de piso térreo com telhado de duas águas, muito simples e muito brancas, com quintais povoados por laranjeiras e oliveiras, um jardim público bem cuidado, uma capela e uma ermida, ambas singelas e despidas de ornamentações externas. E o bairro de acesso ao castelo, mais alto em relação à vila e com ruas mais estreitas, um casario algo irregular onde se destacam as grandes chaminés, como é típico da região alentejana. Encontramos primeiro a Igreja Matriz, consagrada a São Pedro, também ela muito branca, ornamentada com faixas azuis. Mais acima, a Torre do Relógio, ao lado do pelourinho e anexa à Igreja da Misericórdia, e logo a seguir a casa dos Antigos Paços dos Concelho, facilmente identificada pela escada em pedra que ocupa grande parte da fachada.
Sobranceiro à vila, o Castelo de Terena não é particularmente espectacular: uma muralha de dimensões modestas, encimada por ameias e com um formato algures entre o triangular e o pentagonal, uma torre de menagem despretensiosa e algumas torres e bastiões. Mas a localização elevada deste castelo faz dele um excelente miradouro. A norte estende-se a albufeira da Barragem de Lucefécit, e à volta a planície alentejana típica: campos dourados e grupos de árvores de pequeno porte, sobretudo oliveiras, azinheiras e sobreiros.
Antes de terminar o dia vale a pena ir espreitar o Santuário de Nossa Senhora da Boa Nova, que fica a cerca de 1 km de Terena. Neste santuário mariano muito antigo, que se julga ter sido criado sobre um local de culto pagão, existe uma das raras igrejas-fortaleza que podemos encontrar no nosso país: tem planta em cruz grega e detalhes que encontramos habitualmente nas construções fortificadas (matacães, frestas em vez de janelas, ameias e merlões), e a cantaria granítica nua faz com que se assemelhe muito mais a um edifício militar do que religioso.
O Santuário é palco de uma romaria anual, que se realiza no domingo a seguir à Páscoa e é popularmente apelidada de Festa dos Prazeres.
Dia 2
Hoje a manhã começa noutra vila alentejana situada muito perto da fronteira: Alandroal.
Iniciamos o passeio na Fonte das Bicas, num dos cantos da Praça da República, uma fonte barroca construída no século XVIII para aproveitar as águas subterrâneas da região, que eram consideradas de grande qualidade. Daqui seguimos para o interior do castelo, fortificação erguida durante o reinado de Dom Dinis sob as ordens de um arquitecto muçulmano, um tal “Mouro Galvo”, como o atesta a inscrição num dos torreões – facto curioso que mostra como a comunidade islâmica da região estava nesta altura já pacificamente integrada no reino. Em tempos, dentro do castelo existiu um pequeno bairro, mas hoje o espaço está livre de construções, excepção feita à Igreja Matriz da vila, dedicada a Nossa Senhora da Conceição. A alvura da fachada e do muro da igreja contrasta com o castanho muito escuro da pedra, deixada à vista no resto do edifício e nas muralhas.
Subimos a escadinha muito íngreme do Caminho de Ronda, com acesso a uma parte da muralha e à panorâmica sobre os telhados cor de tijolo, que formam puzzles complicados com pedaços de paredes brancas e chaminés a precisarem de pintura. Ao lado, a Torre do Relógio, um acrescento do século XVIII, também em pedra mas com o branco do terraço e da torre sineira a destacarem-se no topo. A saída pela Porta do Arrabalde leva a uma escadaria e à Igreja da Misericórdia – que tem a particularidade de ser composta por duas igrejas paralelas, uma construída no século XVI e a outra no século XVIII.
Para norte do castelo estende-se a parte mais nova da vila, onde se nota recuperação urbana recente e se destaca o bonito Mercado Municipal, um edifício baixo e quadrangular organizado em torno de um pátio interior – a fazer lembrar a herança árabe de toda a região.
Seguimos na direcção da fronteira. O destino é o Castelo-Fortaleza de Juromenha, cujas origens são tão remotas que até tem direito a uma lenda: na época dos Visigodos, teria sido o lugar de encarceramento de uma jovem, de seu nome Menha, por quem um irmão abastado se havia perdido de amores. Mas nem a prisão teria convencido a fidalga a envolver-se numa relação incestuosa, respondendo-lhe sempre: “Jura Menha que não!” Consta que é por isso que uma das torres do castelo é conhecida por Torre da Menha. Lendas à parte, crê-se que tenha sido uma cidade moura com alguma importância, “Yulumaniyia” ou “Julumaniya”, derivando daqui o seu nome.
Pese embora sejam sempre excelentes miradouros, poucos castelos se podem gabar de terem um vista tão invejável para a paisagem em seu redor – e invejável tanto em amplitude como em beleza. Debruçado de um lado sobre o Guadiana, que aqui tem uma largura respeitável e corre em ziguezague, e do outro sobre uma imensidão quilométrica de planície que extravasa em muito o reduzido casario da pequena localidade adjacente, o nosso cérebro tem dificuldade em compreender (muito menos identificar) tudo o que os olhos alcançam do alto das suas muralhas arruinadas. Do lado de lá do rio, os férteis terrenos cultivados e a povoação de Vila Real lembram-nos que aquela faixa de território incluído na comarca de Olivença ainda hoje permanece uma espécie de “terra de ninguém” (ou de todos), teoricamente fazendo parte de Portugal mas na realidade sendo governada por Espanha.
O castelo de Juromenha está, desde há muitos anos e cada vez mais, em avançado estado de abandono e ruína. Custa a crer que foi durante séculos um elemento fulcral na defesa desta região, havendo referências ao local desde a segunda metade do século IX e tendo feito parte do Califado de Córdova. Nos séculos XII e XIII andou em bolandas, ora conquistado pelos reis portugueses, ora recuperado pelos mouros, até ficar finalmente na posse da nossa coroa. Em 1801, toda a região anexa a Olivença e Juromenha foi tomada pelo exército espanhol, durante o conflito a que foi dado o nome de Guerra das Laranjas: a Espanha era aliada de Napoleão, que queria expandir-se em todas as frentes, mas Portugal era aliado secular de Inglaterra, que se opunha ao imperador francês – por consequência, e apesar de por interposta pessoa, Portugal e Espanha encontravam-se em lados opostos do conflito. Juromenha acabou por ser devolvida ao nosso país alguns meses depois, mas Olivença e todo o território português para lá do Guadiana não tiveram até hoje a mesma sorte, nem mesmo depois do compromisso formal assinado em 1817 pelo país vizinho comprometendo-se à sua devolução.
Roubada de grande parte das suas terras, a machadada final veio na forma de uma peste bubónica que assolou Juromenha em princípios do século XX, e que levou à fuga de muitos dos seus habitantes. Desde essa altura, o declínio da povoação acentuou-se (agora terá cerca de 100 habitantes), e com ele o do seu castelo. Visto de fora continua a ser impressionante, com a sua dupla cintura de muralhas compactas, a exterior uma estrela atarracada com baluartes e a interior mais alta, onde a torre de menagem ainda se mantém imponente.
Ainda assim, sobretudo pela sua localização e envolvente, o Castelo de Juromenha mantém uma certa aura de magnificência, que nem o seu confrangedor estado de degradação consegue diminuir.
Um pouco mais a norte há uma outra ruína que é obrigatório visitar. Vamos até à Capela de Nossa Senhora da Ajuda, uma pequena ermida estrategicamente localizada numa elevação junto ao Guadiana. Daqui temos uma primeira perspectiva sobre o nosso destino: a Ponte da Ajuda. Esta ponte-fortificada foi mandada construir no séc. XVI por D. Manuel I para ligar Elvas a Olivença, quando ambas as margens do rio Guadiana nesta zona estavam incluídas em território português, e em substituição de uma outra ponte mais antiga. Tinha 385 metros de comprimento, suportados por 19 arcos, e um torreão colocado no centro, que serviria para controlo de passagem. Foi várias vezes destruída, fosse por cheias ou por lutas armadas, e outras tantas reconstruída, até que em 1709 o exército castelhano a fez explodir durante a Guerra da Sucessão Espanhola. Está em ruínas desde essa altura, apesar de vários planos para ser recuperada como passeio pedonal, e uma das razões que tem travado esta recuperação é o facto de no seu tabuleiro existir a colónia mais numerosa, a nível mundial, de uma espécie rara de narcisos que só se encontram na Península Ibérica e no Norte de África. Mas mesmo arruinada, não perde o seu ar robusto e continua a ser um motivo de atracção – e é, além disso, um local excepcional para observar o pôr-do-sol.
Se ainda sobrar tempo, vale a pena cruzar a ponte (não a da Ajuda, mas sim a nova, mais ao lado) e dar um pulinho a Olivença – a cidade que é meio portuguesa, meio espanhola. Dois séculos sob a administração dos nuestros hermanos, em que a maior parte do tempo Portugal e Espanha estiveram de costas voltadas, fizeram com que hoje a maioria da sua população tenha ascendência espanhola. No entanto, permanecem na cidade muitas marcas da portugalidade, e desde que as relações entre os nossos dois países passaram a ser cordiais não têm faltado iniciativas de aproximação de Olivença às suas vizinhas portuguesas mais próximas, e na generalidade a Portugal. O português já é ensinado nas escolas, como opção, e as ruas do centro histórico têm desde 2010 dupla toponímia, com o antigo nome português (que ainda hoje é usado por muitos dos habitantes da cidade) a figurar também nos azulejos que identificam cada uma delas.
O património monumental de Olivença é, obviamente, quase todo da época anterior à administração espanhola, com destaque para a influência do estilo manuelino, bem visível por exemplo na Igreja de Santa Maria Madalena e na porta dos Paços do Concelho. O Castelo e a Igreja de Santa Maria, situada dentro do perímetro das muralhas, foram originariamente construídos pelos Templários no século XIII, com reconstruções posteriores no século XVI. As casas com grandes chaminés redondas e faixas amarelas na fachada branca são nitidamente idênticas às casas típicas alentejanas.
Mas o pormenor que mais evoca o nosso país são as centenas de metros quadrados de belíssima calçada portuguesa que ornamentam o piso da Avenida de Portugal e da Plaza de España, que já teve o nome de Terreiro do Chão Salgado, da Plaza de la Constitución e da Plaza Magdalena, além de várias outras ruas emblemáticas do centro histórico de Olivença.
Esta cidade, que a administração portuguesa ainda hoje continua a recusar reconhecer como espanhola, tem como faceta mais distintiva do seu carácter uma hibridez que é fonte de diversidade e riqueza culturais, e que reflecte, afinal de contas, a mistura genética de que nós, seres humanos, somos feitos.
A Ana é a autora do blogue Viajar porque sim, onde uma versão deste artigo foi publicada originalmente, e escreve segundo as normas do antigo Acordo Ortográfico.
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