
Esta história remonta ao verão de 2020, àquele breve respiro da pandemia em que foi possível viajar pelo país entre o início do desconfinamento (maio) e o agravamento no número de casos de infeção por covid (outubro).
No meu caso, escolhi a região da Serra da Estrela, onde não ia há pelo menos quinze anos, para revisitar a terra natal do meu pai e voltar a percorrer os sítios que conheci em miúdo, agora na qualidade de condutor à procura de acumular alguma experiência fora da Grande Lisboa.
Um dos dias da viagem foi consagrado a Manteigas. Partimos de Gouveia pela nacional 232, que atravessa paisagens marcadas por enormes blocos de granito, alguns maiores que carros, e bosques frondosos que seguem o serpentear da estrada até à vila de Manteigas, “o coração da Serra da Estrela”. Depois de uma breve paragem para refrescos, seguimos pela 338, a estrada que acompanha o Vale Glaciar do Zêzere -- um assombro de vista, onde a terra parece ter sido esculpida a barro pelas mãos de um gigante.
À saída do vale, deparamo-nos com o Covão d'Ametade, um sítio onde podia ter passado horas a fotografar a incrível fachada de pedra do Cântaro Magro. Tínhamos o tempo contado, contudo, e vontade de chegar ao nosso alojamento, a cerca de 60 quilómetros de distância, em Oliveira do Hospital, antes do anoitecer. Como sempre, quando sou levado a conduzir longe dos meus caminhos habituais, confiei no Google Maps para me orientar.
A aplicação deu-nos duas opções a partir d'Ametade: seguir pela N338 até Seia, contornando o maciço central pelo Norte, ou tomar o que tinha o aspeto de um atalho quase a direito, passando por Unhais da Serra, mais a sul. Optei pelo “atalho” e o primeiro sinal de problemas não tardou a surgir.
A estrada era algo sinuosa, mas não muito diferente das restantes estradas que conduzem à Torre, com a exceção de uma grande diferença: terminava a meio da serra. À nossa frente, depois de uma cerca aberta, a estrada passava a um caminho apertado de terra batida, à beira de uma encosta acentuada.
Não é a primeira vez, desde esse dia, que conto esta história, e pauso sempre nesta parte, para me antecipar à pergunta óbvia: porquê avançar, apesar de ser claro que a estrada acabava ali? Já tive tempo para pensar no assunto, e consigo encontrar alguns fatores que explicam a minha relutância em voltar para trás, a começar pela confiança que depositamos inconscientemente na tecnologia no contexto de uma geografia nova, sem outras pessoas por perto.

Só quando surge uma situação de conflito entre o caminho proposto pelo mapa e as condições reais do terreno é que somos relembrados de que não estamos realmente a tomar decisões há muitos quilómetros. Ter de tomar decisões nesse momento é um bocadinho como ser chamado a resolver um exercício de aritmética já a meio. E a matemática fica ainda mais complicada quando lhe acrescentamos a variável da ansiedade.
Apesar de ser evidente que não se tratava de uma estrada normal, a imagem de satélite mostrava que aquele segmento em terra batida terminava a algumas centenas de metros de distância, dando eventualmente lugar a uma estrada em asfalto com dois sentidos. Por outro lado, o caminho acompanhava a curva da serra, pelo que não era possível, a partir do carro, vislumbrar até que ponto essa informação batia certo com a realidade no terreno.
Passou-me muita coisa pela cabeça nesse momento, mas tenho a certeza que esses "poucos" metros pesaram no cálculo de risco: “o que são algumas centenas de metros?” Não era melhor seguir em frente do que ter de voltar a subir a ladeira que nos levara até ali? Queria mesmo perder esse tempo todo? Não era melhor poupar a gasolina e avançar devagarinho? É assim que se toma uma má decisão, com um olho no relógio e o outro na carteira.
Mais uma vez, segui em frente. Bastou avançar poucos metros, todavia, para mentalizar-me da dimensão do erro. Se o inferno tivesse uma estrada de acesso, imagino que era assim que começava, com a via a ficar progressivamente mais estreita, o piso cada vez em pior estado e a margem para fazer marcha-atrás a diminuir a cada avanço. Não tinha como saber o quão mais estreita ia ficar a via, se havia realmente uma estrada depois da curva e como sairia dali se não houvesse. Ao mesmo tempo, não me imaginava a fazer marcha-atrás ao longo de centenas de metros à beira de um precipício.
Foi aí que o pânico se instalou. Vi-me subitamente numa situação impossível, exatamente como aquelas em que nós, condutores ocasionais, brincamos que nunca entraremos, e em que nenhuma manobra parece isenta de risco. Não sei quais são os processos físicos que desencadeiam a hiperventilação, mas foi algo automático. Quando dei por mim, já estava a respirar como se estivesse em trabalho de parto. Quer avançasse ou recuasse a partir daquele ponto, não conseguia abstrair-me do terror de resvalar. E o cenário estava prestes a ficar ainda mais complicado.
Quando olho em frente, avisto outra viatura a aproximar-se da nossa posição em sentido contrário. Naquela parte da via, já não era possível a dois carros passarem lado a lado sem cuidados máximos. Ainda me encostei ao lado interior da estrada, mas o outro condutor teve exatamente a mesma ideia, sinalizando que me cedia o direito, aqui duvidoso, de passagem. Estava prestes a realizar uma manobra delicada, sem margem para erro, que nunca me imaginara antes a ter de fazer, quanto mais num caminho de terra batida, na Serra da Estrela.
Na outra viatura, seguia um casal com os dois filhos adolescentes, também eles desconcertados com a situação em que nos encontrávamos. Tal como nós, tinham seguido inocentemente as indicações do Google Maps, e avançado pela EM509, desde Unhais da Serra, para subirem a serra até à Torre. Agora, pareciam tão assustados quanto nós. Explicaram-nos que só precisávamos de avançar mais algumas centenas de metros até alcançarmos a segurança da estrada e eu retribuí com o conhecimento de que o caminho que os esperava conduzia ao seu destino. Depois desta troca de garantias, regressei ao meu carro, não sem antes pedir-lhes, mais uma vez, que se encostassem, o mais possível, à parede do outro lado da estrada (com espelhos recolhidos).

Ainda hoje não consigo pensar naquele momento sem sentir uma chicotada psicológica. Ao volante, não é fácil de estimar, mas a margem de erro da situação não podia ser mais de 10-20 centímetros. Chega dizer que foi a coisa mais assustadora que já precisei de fazer como condutor.
Depois da delicada manobra, feita com a minha mãe fora do carro (apesar de ser a pessoa mais calma no local), retomámos a marcha em direção à desejada estrada asfaltada ainda oculta pela curva. E lá estava ela. Sem mais surpresas no caminho, experimentei finalmente a colossal sensação de alívio que acompanha uma lição de vida, mesmo uma tão óbvia como esta: diga o que disser o Google Maps, quando a estrada acaba, o mais prudente é voltar para trás.
Nota: em outubro de 2020, o Notícias da Covilhã reportava que havia planos para asfaltar o troço em falta da EM509 e instalar proteções laterais, assim como semáforos para regular o trânsito na parte mais estreita da via. O Google Maps não chegou a responder a uma "comunicação de problema", submetida na mesma altura. Em fevereiro de 2023, a EM 509 continua a aguardar melhorias.
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