Foto de capa: Facebook - Centro Regional de Apoio ao Artesanato
Os 17 quilómetros quadrados que a ilha do Corvo, nos Açores, rouba ao mar são suficientes para dar morada ao vulcão que lhe deu origem, o Monte Gordo, onde fica a Lagoa do Caldeirão. Tudo o resto é escarpa, exceto a pequena fajã lávica na encosta sul da ilha, onde a Vila do Corvo se organiza em anfiteatro para avistar a vizinha ilha das Flores, mas também o mar.
Para encontrar o “Artesanato do Corvo”, é preciso subir ao topo da vila. É lá que mora Rosa Mariana Mendonça e foi lá que também moraram José Mendonça de Inês e Inês Mendonça de Inês, seus pais, também eles artesãos.
A história das barretas do Corvo vem já de outros séculos, e foi ditada pela proximidade aos Estados Unidos, pelas duras e longas viagens nos botes baleeiros, rumo ao novo continente, e pela necessidade de agasalhos.
Eram os baleeiros que os tricotavam, e eram eles que os usavam. Uma boina de lã azul, vinda das ovelhas corvinas e tingida com anil, sempre ornamentada com o mesmo padrão a lã branca, a “grega”, que termina com um pompom “para amortecer a pancada da cabeça nos botes”, explica Rosa entre risos – é assim a “barreta” do Corvo, como lhe chamam os locais.
Em terra, ensinaram as mulheres a fazer a boina e passaram a ser elas quem as faziam, ainda que só os homens a usassem, até caírem em desuso, em meados do século XX.
Inês Inês, que tinha tricotado uma única barreta, quando tinha 20 anos, para o seu pai, decidiu retomar a tradição esquecida, em 1986, quando foi convidada para participar na feira de artesanato que acontece em São Miguel, por altura das festas do Senhor Santo Cristo dos Milagres.
O seu marido, José Mendonça de Inês, carpinteiro de profissão, também foi desafiado a participar, e, assim, dedicou-se à produção de miniaturas das fechaduras de madeira do Corvo. Morreram ambos com 86 anos, José em 2017, Inês em abril deste ano. Sobra Rosa, que não se atreve com as madeiras, mas continua a tricotar as “barretas”.
“Em 1986, eu tinha 14 anos, e também queria ir à feira do Santo Cristo a São Miguel. Já sabia fazer crochet e tricot, porque sempre vi a minha mãe a fazer, fui-me entusiasmando e tentando fazer”, contou Rosa.
Foi a vontade de ir passear a outra ilha que a motivou a aprender com a sua mãe, na altura a única pessoa que fazia as barretas. Hoje, é a única que as faz, mas deixa o convite: “sempre que alguém quiser vir cá a casa, todas as pessoas do Corvo me conhecem, eu estou disposta a ensinar”.
“Já dei uma formação cá a nove pessoas. Há duas ou três que talvez ainda façam, as outras disseram logo ‘ah, isto dá muito trabalho, não quero fazer mais nenhuma. Foi uma para mim e ponto final’”, lamenta.
Por enquanto, a maior esperança na continuidade da tradição está na pequena Crisviane, que veio com os seus pais de Cabo Verde. “Ela ia fazer três anos quando chegou cá, e chegou ‘a mim’ com cinco anos”, disse.
Agora, tem sete anos, mas já começou a dar os primeiros passos no tricot.
“Comecei a ensinar-lhe o tricot, o ponto básico, só, a fazer uma roupa para umas bonecas. Ela achou que aquilo não era suficiente e todos os dias me dizia ‘eu quero aprender, mas é a fazer barretas’. Comecei uma pequenina, em miniatura, e ela já está a fazer uns pontinhos e muito entusiasmada com as suas barretas”, contou Rosa.
O processo não é simples, até para quem já é experiente no tricot, e Rosa cuidou de o dificultar ainda mais com o novo modelo que desenvolveu – uma versão mais aprimorada do original, que respeita a traça tradicional, mas com pormenores “de luxo”, como uma camada de lã que protege os fios que desenham a “grega”, a marca “Corvino” tricotada no interior, avança a artesã.
“Todas as barretas vão ter o seu próprio número, com a sua personalização, caso a pessoa pretenda. Os números até ao 452 estão reservados para corvinos e descendentes de corvinos. Nunca vai haver dois números repetidos, porque eu fico sempre com o registo de quem e em que data comprou a barreta”, adianta e atesta ainda, com orgulho, que “o número 500 já foi vendido, para o Brasil, para uma Casa dos Açores no Rio de Janeiro, que queria representar o Corvo num rancho folclórico”.
Cada exemplar do novo modelo, feito sem nós nem costuras, é tricotado de forma circular como manda a tradição e demora cerca de 15 horas, “tem muito mais trabalho” que o outro modelo, requerendo 221 metros de lã azul e 16 metros de branca.
Esses 237 metros por barreta são de lã pura, vinda diretamente da Irlanda, uma vez que já não se produz na ilha do Corvo, onde agora as ovelhas pastam livremente nas encostas do vulcão, sem ter quem cuide delas. É essa a principal diferença entre o antigo modelo, que era feito em fio sintético, e a “Barreta 1452”, ano em que foi descoberta a ilha.
Mesmo com toda a complexidade, as pequenas mãos de Crisviane, que há pouco aprenderam a escrever e ainda se detêm no primor de desenhar cada letra cuidadosamente, ganham uma agilidade impressionante com as cinco agulhas, tantas quantas são necessárias para fazer uma barreta.
Foi rápido para aprender, foram “dois ou três serões”, explica Rosa. “Eu noto que ela tem mesmo ali o dom, quando passa o dedo”, considera.
Questionada sobre se gosta de aprender a fazer tricot, diz que sim. “E a Rosa também gosta”, remata.
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