Um povo, dois países
Quando começou Rio de Onor? Boa pergunta, mas não esperem resposta. Ao que tudo indica Rio de Onor é um povoado anterior à fundação da nacionalidade. A memória tem destas coisas, perde-se, e Rio de Onor não deixou propriamente uma certidão de nascimento. O que Rio de Onor tem é uma identidade muito própria de vivência comunitária, que nem a imposição de uma fronteira entre Portugal o Reino de Leão e Castela destruiu. De facto, Rio de Onor e Rihonor de Castilla são um só povo, cortado por uma linha imaginária ditada pelo jogo da política. As fronteiras entre os reinos foram fixadas ainda no século XIII, no tratado de Alcanizes, era D. Dinis rei de Portugal e do Algarve, mas os marcos clarificando a linha de suposta separação foram apenas colocados em 1865, nunca se impedindo o livre trânsito dos raianos que, para trabalhos agrícolas, cruzavam a fronteira várias vezes ao dia.
Ou seja, convém esclarecer uma questão: apesar de estar em dois países, ter dois nomes, duas igrejas, dois cemitérios, o povo é um só. António Sá, fotógrafo e jornalista freelance, que nos guiou pelos caminhos de Rio de Onor, afirmou de imediato que esta questão é essencial para entendermos Rio de Onor. António Sá, natural de Espinho, fixou-se nesta região do país em contraciclo com a tendência de desertificação do nordeste transmontano (mas está longe de ser caso único!) e fez em 2001 um trabalho sobre a comunidade de Rio de Onor que foi publicado na National Geographic Portugal: “Estive muito tempo aqui com as pessoas. Estive cá na Páscoa, estive cá no Natal, estive cá em várias épocas. Conheci as famílias muito bem e eles acolheram-me como se eu fosse filho deles.” O título desse artigo surgiu naturalmente - “Este povo é só um” - da boca do Sr. Paco (“não sei se ainda é vivo”), que, enfastiado pela insistência de António Sá em tentar descortinar diferenças entre a vivência dos dois lados da fronteira, exclamou: “Oh homem, este povo é só um!”. E de facto “é muito mais aquilo que os une do que aquilo que os separa.”
Rio de Onor: o isolamento e as tradições comunitárias
Durante centenas e centenas de anos, Rio de Onor, que fica a cerca de 20 quilómetros de Bragança, foi servida por caminhos de terra batida que serpenteavam a serra de Montesinho, território de lobos e de outros animais selvagens nem sempre amistosos para os homens e os seus rebanhos. Só na década de 1930, a toque de picareta, foi rasgada a estrada para Bragança. Mesmo assim a via ficou em terra batida por mais 30 anos.
Nessas condições de isolamento não se poderia esperar grande intervenção da sede de concelho – Bragança – e muito menos de Lisboa. Por isso, em Rio de Onor, ergueram-se códigos para garantir a sobrevivência e a sã convivência entre as pessoas. É certo que o exemplo de Rio de Onor não foi o único caso de comunitarismo agro-pastoril em Portugal (assumindo formas diferentes conforme o relevo, o grau de isolamento, a riqueza do solo), mas aqui estes costumes sobreviveram pelo século XX adentro, ignorando até mesmo uma linha de fronteira. De facto, como José Correia da Cunha escreveu há décadas atrás, Rio de Onor era “exemplo típico de uma comunidade suficientemente independente para constituir quase um Estado dentro doutro Estado (…). E porquê? Porque “Rio de Onor pôde permanecer igual a si mesma em virtude do isolamento a que o ambiente geográfico a votara” (em “O Comunitarismo Agrário e o Ambiente Geográfico”).
Memórias da Comunidade Agro-Pastoril
Falámos com o Sr. Mariano Augusto, 87 anos, morador de Rio de Onor, que hospitaleiramente nos abriu as portas da sua vida e também da adega da sua casa. É um homem habituado a estas andanças, basta vê-lo num documentário de 1997 intitulado Rio de Onor – A Memória do Conselho(que inclui imagens do documentário etnográfico produzido pela RTP em 1962 sobre a aldeia, da autoria de Michel Giacometti).Aliás, os habitantes de Rio de Onor estão habituados a esta curiosidade de quem vem de fora, pelo menos desde a visita do doutor Jorge Dias, que na década de 1940 passou aqui alguns anos até dar à estampa o livro Rio de Onor: Comunitarismo Agro-pastoril. “Esse livro é a relíquia da aldeia”, diz-nos o Sr. Mariano.
“Esta aldeia teve sempre a característica de aldeia comunitária. E qual era o comunitarismo daqui? A união das pessoas, a união no trabalho, a união na pastagem dos rebanhos. (…) No ano novo a gente nomeava duas pessoas a quem chamávamos os dois mordomos, e tudo o que pertencia à parte comunitária eram eles que resolviam.” O equilíbrio entre o trabalho da terra em pequenas parcelas e o gado dava coesão à vida social rionoresa. Mas agora, com o envelhecimento da população e a desagregação da vida pastoril, o comunitarismo, tal como ele era conhecido em Rio de Onor, está claramente em vias de extinção. Quando lhe perguntam pelo gado, o Sr. Mariano Augusto é perentório: “o gado onde é que está, filho?”, para logo de seguida descrever o seu tempo de juventude, quando na aldeia havia “trezentas cabeças de ovelhas, trezentas cabeças de cabras cento e tal vacas e 'boi da coberta' ”, também comunitário. Agora “há um rapazito, de fora, que tem 70 ovelhas.”
O isolamento, juntamente com as obrigações decorrentes da vivência agro-pastoril, culminaram na criação de um órgão local – o Conselho – constituído por cada chefe de família, que regulava todos os aspetos da vida coletiva. O Conselho atribuía multas, que puniam desde faltas de comparência ao trabalho até coisas mais graves, como “faltas de respeito” ou furtos. Segundo o Sr. Mariano, “cada vez que havia problemas, o mordomo tratava de tocar o sino”... normalmente a multa era em vinho, mas “quando era uma coisa muito grande tinha de ser em dinheiro”, dando como exemplo uma vizinha que foi condenada a “pagar 100 escudos de multa”, por furto de umas couves. “Aqui, graças a Deus nunca houve intrigas de sangue... era léria, léria, léria e tudo passava”, sossega-nos o Sr. Mariano.
As sanções eram inscritas na vara da justiça, um pau de comprimento médio com uma marcação para cada família, ao qual iam sendo acrescentados, no sítio certo, mais ou menos entalhes, consoante o número e a gravidade das sanções. A vara que o Sr. Mariano nos mostra é um registo ao melhor estilo cuneiforme, um elemento que parece saído de um tempo anterior aos romanos e, com ela na mão, subitamente o Sr. Mariano parece-nos um patriarca saído de um tempo mítico. Antigamente havia um “respeito muito grande pela vara da justiça”, mas hoje é claro, a vara da justiça é apenas um elemento pitoresco de uma comunidade que evoluiu naturalmente mal se quebrou o jugo do isolamento a que estava presa.
E o futuro?
O sistema de Rio de Onor marcou um tempo, contribuindo para a sobrevivência de uma comunidade única e irrepetível, mas hoje é obviamente pouco mais do que uma memória. A acentuada decadência da pastorícia, que era o que forçava a organização comunitária, combinada com o fim do isolamento, que era o que determinava autogestão, ditou o fim de um modo de vida secular.
Olhamos para Rio de Onor com toda a dignidade que merece, sem passadismo melancólico nem fatalismo. Até porque enquanto a água do rio Onor continuar a fecundar as margens, não há motivos para prever o desaparecimento do povo. Para além disso, o turismo sustentável está a fazer o seu caminho e possibilitará o aparecimento de pequenos negócios (já os vemos no povoado), talvez em combinação com a prática agro-pastoril de forma não intensiva. Já não será a Rio de Onor dos documentários a preto e branco, é certo, mas será a Rio de Onor do seu tempo.
P.S. Quando já nos preparávamos para fazer o caminho de volta, encontrámos um ancião junto a uma fonte, envergando uma camisola grossa, talvez grossa de mais, que diz para o grupo “Venham mais vezes, há espaço aqui para todos”.
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