O casario branco vence a íngreme Serra de São Mamede, no Alentejo. No alto ergue-se o castelo mandado construir por D. Dinis, em 1180. As terras de vide ganharam, nesta altura, o nome de Castelo de Vide. Na manhã de final de Verão, o Sol espreita timidamente por entre as nuvens. No antigo rossio do século XVIII, começa o burburinho matinal, montam-se esplanadas, regressa-se da padaria com pão fresco. No ar, paira ainda o cheiro do orvalho de uma noite húmida.

Castelo de Vide, memórias judaicas nas ruas alentejanas
créditos: Município de Castelo de Vide

Estamos no Rossio, local emblemático da vila, onde se celebram tradições que resultam da mescla de culturas, sobretudo cristã e judaica. O Rossio era o centro, o local de feiras. Era o centro moderno a partir do século XVIII. Aqui se encontra a Câmara Municipal e a Igreja Matriz.

A Igreja Matriz está no centro do antigo rossio, rodeado por edifícios de fachada branca, onde se destacam, pela diferença, dois de granito. Eram edifícios militares erguidos por famílias transmontanas, daí a utilização do granito, pouco característico aqui no Alentejo.

O ponto alto de Castelo de Vide em festividades é a Páscoa, que resulta do encontro de culturas de que a vila é feita: a cristã e a dos judeus, convertidos ao cristianismo. Ainda se faz a bênção dos cordeiros. Na Páscoa, o Rossio enche-se de cordeiros que são benzidos pelo padre. Na celebração das aleluias, o equivalente à vigília pascal, cada pessoa saca de um chocalho. Repare que habitualmente estão perto de duas mil pessoas dentro da igreja e, talvez, duas mil a quatro mil na rua. Todos com um chocalho. No domingo tem lugar uma procissão, organizada pelo município, que convida todas as organizações da terra. Estas levam os seus estandartes. É mais um cortejo do que uma procissão. O cortejo sai dos Paços do Concelho, passa pela igreja e convida o padre a participar. No regresso o padre celebra uma missa em honra do município.

A judiaria - Ruas empedradas escondem crenças

Deixamos a ampla Praça D. Pedro V e encetamos caminho para a judiaria. A partir do século XIV os judeus começam a fixar-se aqui. Castelo de Vide tem o segundo maior conjunto de portas góticas do mundo, a seguir à cidade marroquina de Fez. Estamos a subir a rua de Santa Maria de Cima e deixamos a rua de Santa Maria de Baixo. De uma vez só vieram 123 famílias dos Açores para Castelo de Vide. No burgo medieval, os mais velhos ainda têm o sotaque açoriano. De outra vez chegaram a concentrar-se na Portagem, junto a Marvão, mil famílias que aguardavam entrada na vila.

Com a presença deste povo, Castelo de Vide ganhou contornos de vila urbana, por oposição às zonas mais rurais. Os judeus tinham profissões eminentemente urbanas, como sapateiro e ferreiro. A judiaria cresce em direcção ao Castelo. Ruas estreitas que guardam segredos de um povo que teve de esconder as suas crenças para fugir aos autos de fé da inquisição. Cruzes que camuflam símbolos judaicos, vasos de flor que dão frescura às ruas empedradas e rostos onde cada ruga parece revelar uma história, dão vida ao bairro judaico. Entramos no Castelo, também conhecido por burgo medieval. Aqui vivem perto de cem pessoas.

Castelo de Vide, memórias judaicas nas ruas alentejanas
créditos: Município de Castelo de Vide

Sinagoga - Mundo de memórias

Rua da Fonte. Na descida desde o Castelo por esta rua, deparamo-nos com a Fonte da Vila, monumento emblemático de Castelo de Vide que encerra em si, muitas das vivências judaicas. Antes de terminar a descida acentuada, uma paragem para visitar a sinagoga. Acredita-se que aqui foi uma sinagoga. Hoje é um espaça museológico com esse nome. Neste espaço conta-se, de forma abreviada, a história dos judeus em Castelo de Vide e estão expostas algumas peças deste povo: mezuzá, torah. A habitação seguinte é escura com inúmeros nomes escritos na parede. No tecto e no chão, uma estrela de David. Este é o espaço que presta homenagem às vítimas da inquisição. No rés-do-chão, temos um tecto decorado com chocalhos. Podemos puxar o cordel e aproximamo-nos daquilo que é a aleluia na Páscoa. O chão de vidro na sala seguinte para revelar os celeiros e a banheira para o banho das mulheres após o período menstrual. As mulheres vinham em grupo e saiam em grupo para não se saber qual estaria nesse período.

Castelo de Vide, memórias judaicas nas ruas alentejanas
créditos: Município de Castelo de Vide

A Fonte da Vila

Fechamos a porta da Sinagoga. Retomamos a descida da Rua da Fonte. Ouve-se correr a água, trazendo alguma frescura ao dia. A partir de 1498, o culto deixou de se fazer no tabernáculo de costas. Nesta data a comunidade judaica mundial decidiu que o culto ia passar a fazer-se num espaço aberto debaixo de uma cúpula suportada por seis colunas. Em Castelo de Vide, este monumento é a Fonte da Vila, onde cristãos-novos faziam o seu culto, mas para o disfarçar utilizaram o elemento fonte, água, para dissimular este novo espaço de culto. No cimo há uma tulipa suportada por duas crianças. A caldeirinha do cimo estava sempre cheia de água. Diz-se ainda hoje que tem de se encher a caldeirinha para que a tulipa nunca murche. Com esta metáfora de tempos pretéritos, os judeus tentaram transmitir a sua cultura às gerações futuras. Hoje em Castelo de Vide, o judaísmo é alvo de estudo e um atractivo turístico, um dos motores da economia local.

Castelo de Vide, memórias judaicas nas ruas alentejanas
créditos: Município de Castelo de Vide