Texto e fotografias por Rui Coelho
As histórias têm sempre algo circular. Aquilo que se abre no começo e nos intriga, deve fechar-se pelo final. E se algo existe que fica sem resposta, não tem outra função que continuá-la depois de se extinguir o formato físico em que nos chegou. Levamos todos histórias dentro de nós que ouvimos, lemos ou vivemos e que ainda mexem à procura do pedaço que lhes falta. O círculo perfeito.
A nossa viagem começou assim, com histórias. Antes sequer de haver lugares concretos, havia uma paisagem. Um Caribe caloroso e perfumado. Sol, sal e fruta madura. Os livros empilhavam-se numa escadaria de lombadas que levavam a uma ideia de lugar. Tinha nome, Colômbia, mas era um sonho ancorado no real. Fantasia de escritores, a realidade triturada pela máquina voraz da literatura. Idealizar uma viagem pela descrição de espaços que podem não existir é um passo firme no caminho da desilusão. Ainda assim, ousamos.
Sabíamos que queríamos Cartagena. Queríamos o Caribe inteiro, de Santa Marta a Aracataca; Barranquilla, Sierra Nevada, Sucre. Queríamos as bananas, o cheiro a goiaba e manga; o mar de cores mutáveis e o sol implacável. Sabíamos que queríamos Cartagena pelos livros que lemos. Queríamos o Gabo, como lhe chamam, lá. Esse Gabriel José de la Concordia García Marquéz que aparece desenhado e pintado em esquinas, pagelas e folhetos, elevado a santo quase. Chegamos com tudo isso às costas a uma Cartagena que já não era escrita, mas real.
Fomos recebidos pelo Samuel, o nosso anfitrião no primeiro voluntariado: restaurar uma casa colonial no bairro histórico de Getsemani. Batizaram-na como “Casa del Diablo” e a primeira impressão, ao vê-la, foi estar na presença de algo que se perdeu a meio caminho entre um naufrágio e uma catedral. Todo o lugar foi reconstruído usando restos de materiais e desperdícios de outras construções. A arquitetura do espaço é quimérica, com um pátio interior onde crescem árvores maiores que a casa. Os muros altos são feitos de antigos corais, calcificados em pedras toscas e brancas, que se empilham bem acima do chão. Olhá-los é como ver o fundo do mar elevar-se. Os quartos e as divisões estão construídos ao ritmo de sonhos, cada um mais distinto que o outro. Há correntes de navio, de ferrugem negra, a ligar uma ponte suspensa entre divisões. Há ameias e escadas em caracol, terraços e grades. Há estátuas de anjos, ninfas, sereias e diabos incrustadas nas paredes. Há azulejos, hieróglifos e santos do tamanho de homens. Há mesas de jantar que foram portas de castelo e um candelabro de igreja, bem como esculturas de crocodilos, em ferro oxidado, penduradas no alto dos muros. Há flores suspensas, colibris e abutres negros. E, acima de tudo, há um sentimento de construção perpétua, como se o espaço estivesse vivo e por isso eternamente inacabado.
O Samuel explicou-nos que toda a casa fora idealizada pelo seu pai, um arquiteto e artista plástico colombiano. Era um projeto de vida, que durava desde que ele e o irmão eram pequenos. Estávamos com sorte porque, naquela semana, iam finalmente completar o muro do pátio. Apontou a parede de uma casa vizinha que espreitava diante do nosso quarto. Iam cobri-la por inteiro. Mostrou-nos um monte de pedras por baixo da nossa janela. Eram as últimas trazidas de um antigo convento. Aproximou-se e pegou numa. Era coral. Perguntei-lhe se seria essa a nossa função durante o tempo que ali estivéssemos, mas tranquilizou-nos. Os nossos trabalhos seriam bem mais simples.
Durante as duas semanas que se seguiram, vimos aquelas pedras serem levadas uma a uma para o topo do muro, enquanto nós, cá de baixo, na simplicidade de quem não sabe e por isso aprende, ajudávamos em tarefas mais pequenas.
Trabalhávamos durante as manhãs para dedicarmos as tardes à exploração. Não visitamos um único monumento, mas reviramos todas as livrarias que encontramos. Cartagena respira livros. Fizemos para que a nossa estadia coincidisse com o festival literário “Hay Cartagena” e por isso a cidade mostrava ainda mais brio nas suas letras.
Havia um jardim de alfarrabistas e, sob as arcadas das muralhas, livreiros vendiam primeiras edições juntamente com camisas e chapéus. Pululavam também livros pirata, com capas e letras duvidosas, espalhados pelo chão ou em bancas informais. Estima-se que, na América Latina, a pirataria de livros roube entre 25% a 50% dos lucros do mercado editorial. O maior argumento a seu favor é o preço dos livros, irrisoriamente baixo. Dizem os piratas que levam cultura onde está, de outra forma, não pode chegar. É um polvo demasiado grande para ser erradicado.
Aquando o lançamento de “Memória das minhas p*tas tristes”, de Gabriel García Marquéz, um dos eventos editoriais do ano, fizeram-se esforços sobre-humanos para manter o livro fora do alcance da pirataria. O manuscrito foi lido por uma ínfima quantidade de pessoas, dentro da editora, e as gráficas foram vigiadas com força policial durante a impressão do mesmo. Poucos dias antes da data definida para o lançamento, qual não foi o espanto de alguns trabalhadores da editora, quando viram o livro ser-lhes vendido nas filas de semáforo da capital colombiana. Os piratas tinham vencido.
Na Colômbia, a obra de Gabriel García Marquéz assume estatuto de bíblia, mais ubíqua e omnipresente que a palavra de qualquer deus. E nós, durante aqueles dias, devotos, comprávamos. Não faltou muito para que o meu entusiasmo adicionasse alguns quilos de papel às nossas malas, na esperança de, mais tarde, os adicionar às estantes de casa. A Teresa, mais racional, pedia-me critério e eu, não com muito sucesso, refreava a minha devoção. A parte dolorosa de gostar do trabalho de um autor é que, mais livro menos livro, ele acaba. Comprei quase tudo o que me faltava ler, alguns títulos repetidos até, só pela beleza das edições. Ficou a faltar apenas um: “Do Amor e outros Demónios”, um livro fininho que por alguma razão desprezei a cada encontro.
A viagem tinha um plano próprio, alheio ao nosso. As duas semanas em Cartagena transformaram-se num mês. No penúltimo dia de trabalho, senti-me mal. O meu estado piorou e poucos dias depois descobri que estava infetado com dengue. A “Casa del Diablo” fazia jus ao nome e ganhava uma nota sombria. O Samuel e a família acolheram-nos como um dos seus, mas decidimos abandonar a casa com medo que a Teresa também fosse infetada. Na Cartagena real, além de deslumbramento, também existem mosquitos.
As semanas que se seguiram foram de alguma angústia. O repouso forçado num quarto de hotel e a gestão emocional, para não ceder ao medo de que a doença agravasse, afastaram os encantos da cidade. Cartagena mostrava-nos assim um lado mais negro. Quando o médico me deu alta, foi com alguma surpresa que notei a felicidade que sentia por poder abandoná-la. Íamos sair, visitar as ilhas do Rosário, seguir viagem. Ou assim achava.
Um contratempo qualquer, com a receção do hotel, fez com que nos atrasássemos e perdêssemos a última lancha que saía para as ilhas. Mais uma vez, éramos obrigados a adiar a partida; parecia um capricho do destino, como se a cidade não nos quisesse largar. Fomos remoer a frustração para a livraria habitual. Queríamos matar as horas, desfazê-las em algo pequenino que se pudesse esbanjar e acelerar o tempo. Da nossa mesa, vi o “Do Amor e outros Demónios”, numa estante, em edição de bolso. Decidi comprá-lo. Era o único que faltava afinal e o dia parecia-nos um deserto demasiado longo para se desprezar qualquer tipo de prazer. A Teresa, na sua resiliência otimista, sugeriu fazermos uma tour: “Gabriel García Marquéz: Mitos e Lendas”. Aceitei, sem saber que a história estava prestes a fechar-se.
Gabo viveu em Cartagena durante várias fases da sua vida. Depois do exílio, a que foi obrigado, como quase todos os autores latino-americanos seus contemporâneos, foi a cidade que escolheu para voltar ao seu país, ao seu Caribe. Era já um escritor consumado, a nível mundial, e reza a lenda que não conseguia comprar nenhuma casa no centro da cidade. De todas as vezes que tentava, quando se inteiravam a quem estavam a vender, aumentavam o preço para valores astronómicos. Pediu então a um amigo, arquiteto, que intercedesse por si. Confiava no seu bom gosto e exigia apenas que, em nenhum momento, revelasse a sua identidade.
Não tardou muito para o amigo lhe devolver a chamada, dizendo que tinha encontrado o lugar perfeito. Junto das muralhas, na parte ocidental da cidade, voltado para o mar, um edifício amplo de uma tipografia antiga estava à venda. A única contrapartida era que o dono fazia questão de conhecer pessoalmente o futuro proprietário da casa. Antes que Gabo se alarmasse, o amigo deu-lhe a boa notícia: o dono era cego. Teria apenas de vir, falar o mínimo possível e a compra ficaria oficializada. Assim fez, apanhou discretamente um voo da Cidade do México, lugar onde morava, para Cartagena de forma a conhecer o proprietário. Durante o encontro, não foram precisas mais do que duas palavras para o dono do edifício saber com quem estava a falar. O amigo de Gabo indignou-se, disse que tinham feito um acordo e que agora, só por ser para quem era, ele não poderia subir o preço. O senhor disse que não pretendia subir, mas baixá-lo. Segundo ele, tinha ganho tanto dinheiro a imprimir versões pirata dos livros de Gabo, que seria o mínimo que podia fazer.
A tarde desse dia forçado em Cartagena foi passada entre histórias como esta. O guia compensava algumas incorreções sobre os livros, com o entusiasmo com que falava. Levou-nos a deambular pela cidade, narrando um pouco da sua história a par com a do escritor. A tour acabou com uma visita ao que é hoje um dos melhores hotéis da América Latina; um antigo convento restaurado para, em vez de freiras, abrigar turistas. Explicou-nos que Cartagena foi roubada ao mar e que, os primeiros edifícios erigidos pelos colonizadores, à falta de outro recurso, foram construídos com pedras de coral. O convento de Santa Clara, assim era o nome, fora um deles.
Entramos no bar do hotel e, no centro, uma escadaria sombria e estreita conduzia até algumas tumbas. Parte do hotel está construído por cima do antigo cemitério do convento. Uma delas estava partida e lia-se a seu lado, numa placa colocada posteriormente, a história que fez com que, de todas as tumbas, só aquela fosse salva do olvido.
Um jovem Gabriel García Marquéz, jornalista de um jornal local, agora extinto, foi enviado ao convento de Santa Clara (então, ainda longe de ser um hotel), num dia sem grande movimento noticioso, para cobrir a exumação de uma tumba onde o corpo de uma criança tinha sido desenterrado com uma cabeleira intocada, de mais de vinte metros. O episódio marcou o autor de tal forma que, anos mais tarde, já a morar em Cartagena depois do exílio, escreveria a história ficcionada daquela criança que, mordida por um cão empestado com raiva, seria vítima não da doença, mas de possessões demoníacas, ou assim diziam, levando-a a uma morte solitária e agoniante no convento onde seria sepultada.
O livro em questão, escrito por Gabo, chama-se “Do Amor e Outros Demónios” e as pedras de coral, que se perderam durante a transformação do convento em hotel, foram levadas até ao histórico bairro de Getsemani, para uma casa de nome sombrio que se reconstruiu com pedaços de outras, a “Casa del Diablo”, onde um casal de portugueses, muitos anos depois, trazidos pelo amor aos livros, seria testemunha da nova morada daquelas pedras.
Talvez não seja muito. Talvez não mereça os arrepios que senti ao tomar consciência de tudo, dentro da tumba, com o livro ainda por abrir dentro da bolsa. Mas ali, entre dengue, raiva, livros e morte, senti que a nossa história em Cartagena se fechava. Um círculo perfeito, digno de uma dessas histórias que nos fazem querer viajar.
Projeto “Cuentame Quilómetros”
“Cuentáme-quilómetros” é o nome do projeto vencedor do “Emunicipa-te” de Viana do Castelo. Um projeto de bolsas municipais de gap year através do qual, durante 6 meses, a Teresa Osório e Rui Coelho vão viajar pela América Latina. Podem acompanhar a sua viagem também no instagram.
O projeto “Emunicipa-te”
O “Emunicipa-te”: Programa Municipal de bolsas de gap year é um projeto desenvolvido pela Gap Year Portugal em parceria com vários municípios. O projeto já vai na terceira edição e todos os anos aumenta o número de municípios aderentes que premeiam jovens dos 18 aos 30 anos residentes ou estudantes no seu concelho com uma bolsa de gap year, que pode ir até aos 6.500€. As candidaturas para as bolsas de gap year de 2023 dos municípios de Odemira, Viana do Castelo e Oeiras já se encontram abertas no site oficial assim como o respetivo regulamento. Mais municípios parceiros serão anunciados em breve.
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