É curioso como, não há muito tempo, me cruzei com um texto de Vitorino Nemésio – autor já referido nestas crónicas pelos Balcãs – que tão bem explora esta natureza intrínseca partilhada entre pai e filho, num modo de ser indissociável à sua açorianidade:
“Como homens, estamos soldados historicamente ao povo de onde viemos e enraizados pelo habitat a uns montes de lava que soltam da própria entranha uma substância que nos penetra. A geografia, para nós, vale outro tanto como a história, e não é debalde que as nossas recordações escritas inserem uns cinquenta por cento de relatos de sismos e enchentes. Como as sereias temos uma dupla natureza: somos de carne e pedra. Os nossos ossos mergulham no mar.”
E foi nesta demanda de homem inquieto que parte da sua terra para questionar o mundo, ainda que com os ossos mergulhados no vasto azul, que encontramos, a poucos minutos de Kotor, uma pequena aldeia, Perast. A sua dimensão convida a que seja explorada a pé, e foi o que fizemos, acompanhados de uns deliciosos burek (folhados de carne, queijo ou vegetais), tal a energia necessária para carregar na mochila o Viajante X. Além deste bonito passeio, desfrutamos da oportunidade de visitar a Igreja de Nossa Senhora das Rochas. De estilo barroco, esta basílica foi erguida em 1630 numa ilhota artificial construída por pescadores, no local onde foi descoberta uma imagem da Virgem.
Mas o canto das sereias continuava a ecoar nas cabeças dos insulares, ao que seguimos até Budva, sítio que por não nos ter encantado, fez-nos querer espreitar um local de eleição para muitos milionários: Sveti Stefan. Esta pequena ilha, a poucos quilómetros de Budva, toda murada e datada do século XV, ligada ao continente por um estreito istmo, é uma antiga aldeia de pescadores, outrora edificada para servir como fortaleza e defender a população contra os ataques turcos. Mas os tempos mudam e hoje é um dos lugares de charme mais icónicos de Montenegro. Mas por apenas estar aberta a clientes, e estando nós cientes da nossa irrevogável condição de mochileiros, ficamos determinados a encontrar um espaço nos arredores para absorver as vistas incríveis daquele sitio e, finalmente, mergulhar nas amainas ondas do Adriático.
Estou convicta de que acabamos por perder a noção do tempo nesse pedaço de cascalho, provavelmente por culpa de quem habita nos confins submersos, sejam sereias ou tritões, e que nos terão enfeitiçado pelo seu canto, ainda que bem amarrados ao mastro da embarcação, ou não fosse o destino final de cada viagem, a ilha mãe, tal como nas aventuras de Ulisses. Que nesta epopeia pela vida, sejamos todos tão afortunados como este herói, ou não tivesse, aquando da sua chegada a Ítaca, sido reconhecido pelo seu cão Argos, ainda que bastante mais envelhecido, vivido e cansado, além de esperado pelo seu fiel e resistente amor.
All the ones who come
All the ones who go
Down to the water
All the ones who come
All the ones who go
Down to the sea
I believe in God
I believe in mermaids too (…)
Mermaids, Nick Cave & The Bad Seeds
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