Deixei para trás a movida e o salero de Madrid e fui em busca de um lugar mais recatado e calmo. Reservei um dia na minha visita a Madrid para visitar os arredores da Comunidade de Madrid. A minha opção recaiu sobre o histórico e pequeno município de San Lorenzo de El Escorial (também conhecido por El Escorial de Arriba), situado a menos de 50 km a noroeste de Madrid.

Há muito que queria conhecer o “Real Sítio de San Lorenzo de El Escorial”. E também havia outro motivo. Queria experimentar viajar de comboio por Espanha. Trata-se de uma forma diferente de viajar, para quem não tem carro, e utiliza o transporte público nas suas itinerâncias. Porque não conhecer o Escorial, com recurso ao transporte ferroviário?

Os arredores de Madrid estão recheados de palácios e residências reais. São os casos dos palácios e pequenas residências reais do El Escorial, Casita del Príncipe, El Prado, Aranjuez, La Granja de San Ildefonso e de Rio Frio.

A uma hora de Madrid, através da Linha Rosa (Línea C-3a), em pleno coração da Serra de Guadarrama, chegamos à Estação El Escorial. É nesta pitoresca localidade dos arredores de Madrid, as Cercanías, que encontramos o majestoso San Lorenzo de El Escorial, pensado pelo Rei Filipe II de Espanha, no século XVI, para comemorar a vitória na Batalha de San Quitín, ocorrida a 10 de Agosto de 1557, contra os franceses.

Suba ao miradouro de Abantos para apreciar uma panorâmica do Mosteiro e, ao fundo, da malha urbana de Madrid. A 50 Km [a noroeste] de Madrid, o viajante poderá sentir o ar puro da natureza, sempre acompanhado pela envolvência do magnifico Mosteiro del Escorial.

Chegada a Madrid

A cidade de Madrid é uma “das capitais mais vivas, barulhentas e dinâmicas da Europa”, refere Jan Morris na sua obra Espanha. Não passava de uma aldeia fortificada Muçulmana insignificante no centro da meseta castelhana, aquando das lutas entre seguidores do Islão e do Cristianismo. Na segunda metade do Século XVI, durante o “Sieglo de Oro”, Filipe II de Espanha (do ramo espanhol da Dinastia dos Áustria – Habsburgos) faz dela a sua capital política e administrativa, símbolo da unidade de toda a Espanha, resgatando-a da sua quase banalidade bélica. Converte-a numa espécie de Brasília para Espanha.

Até aí, a maior cidade da “Jangada de Pedra”, como refere o Nobel da Literatura José de Saramago aludindo à silhueta geográfica da Península Ibérica, era Lisboa. Mais tarde, em meados do Século XIX, esta foi suplantada por Madrid como a cidade mais importante da Península Ibérica. De facto, a sua posição geográfica no interior de Espanha e da fixação da corte dos Áustrias (Séc. XVI-XVII) e dos Bourbons (Séc. XVIII) ajudaram-na a fomentar a hegemonia e a consolidação desta cidade como a “cabeça” da Monarquia Hispânica e o “coração” da Península Ibérica. Maior e mais povoada urbe da Península Ibérica e umas das maiores cidades europeias, superada por Londres e Berlim. Representa 20% da riqueza produzida pelo Reino de Espanha.

Madrid
Gran Vía, com o majestoso edifício da Telefónica, é o coração de Madrid créditos: OLIRAF

Entro no moderno e confortável metro de Madrid na carismática estação da Gran Vía, segundos os locais, a  a praça da Espanha é conhecido como a Broadway madrilenha, com o altaneiro prédio da telefónica a fazer-me sombra. Trata-se do antigo edifício-sede da Compañía Telefónica Nacional de España (CTNE), construído entre 1926 e 1929, pelo arquiteto Ignacio de Cárdenas Pastor e muito assediado pelas forças franquistas durante o cerco de Madrid (de nov. 1936 até Mar. 1939). Para as forças republicanas que defendiam capital era fundamental para as comunicações da Segunda República Espanhola (1931-1939) e servia como posto de observação dos movimentos das forças nacionalistas. Já foi o maior edifício da capital espanhola, com quase 90 metros de altura.

Por momentos, o aprendiz de viajante andarilho é transportado para outras latitudes, particularmente, para os arranha-céus de Nova Iorque (EUA). O centro de Madrid é dominado por edifícios de betão modernos, novas urbanizações de grandes dimensões e os modernos arranha-céus dos poderosos bancos espanhóis, todos eles símbolos da Espanha Moderna.

Próxima Estação: Atocha

O ponto de partida é a estação de Atocha-Cercanías. Construída em 1851, esta estação ferroviária, localizada no centro de Madrid, foi a primeira estação que serviu a capital madrilena. O objetivo da sua construção era unir a capital espanhola Madrid a Aranjuez, onde se localizava o Palácio Real de Aranjuez. Mais tarde, tornou-se a principal estação ferroviária da capital e de toda a Espanha. Em 1892, foi alvo de remodelação com a construção de uma cobertura sobre a nave principal, desenhada pelo engenheiro Saint-James, com os expressivos 152 metros de largura, 48 de vão e 27 de altura, e é um dos edifícios arquitetónicos mais distintivos de Madrid.

Atocha
Atocha créditos: OLIRAF

Há ligações ferroviárias para todas as regiões autónomas e cidades. Recebe mais de 15 milhões de passageiros/ano. Recentemente, na década de 80 e 90 do século XX, a estação foi renovada para acolher o comboio de alta velocidade – o AVE – e reforçar a oferta de serviço de passageiros, ficando dividida em três áreas distintas: Madrid-Puerta de Atocha, Madrid-Atocha Cercanías e Atocha Renfe.

Apanho ao comboio das “Cercanías” que faz a ligação entre o centro de Madrid e a à área metropolitana. Viajo nas moderníssimas automotoras da Serie 462/3/4/5, de tração elétrica, construídas, em 2004, pelo consórcio Caf, Siemens, Bombardier y Alstom, fazem parte da frota da Renfe-Cercanías.

Conhecidas como Civia, estes comboios da operadora Renfe, a congénere espanhola da CP, são um belo exemplo de conforto, rapidez, satisfação, eficiência energética e mobilidade nas grandes áreas metropolitanas. Estão dotados para levar 169 passageiros. São os comboios que fazem os serviços urbanos e suburbanos de Madrid. Com paragens frequentes e grande afluência de passageiros (ou viajeros), a viagem é agradável, calma e silenciosa, permitindo-nos apreciar o interior do material circulante e a paisagem envolvente.

Estação de Atocha – Tren Cercanías
Estação de Atocha – Tren Cercanías créditos: OLIRAF

Durante a viagem de comboio, entre as estações de Atocha e El Escorial, vendo desfilar a imensidão do planalto ermo castelhano e o aproximar dos contrafortes despedidos de vegetação exuberante da Sierra de Guadarrama, deparei-me com uma enorme Cruz. Fiquei intrigado com aquela enorme e fina estrutura vertical que se destacava na paisagem envolvente. Era impossível ficar indiferente.

Mais tarde, quando regressei a Portugal, e após algumas pesquisas, apercebi-me de que se tratava da Cruz granítica que assinala o complexo do Valle de Los Caídos. Esta Cruz foi erguida, conjuntamente com uma enorme cripta granítica, numa cumeada da Sierra da Guadarrama, num dos lugares mais marcantes e sangrentos da Guerra Civil de Espanha (1936-1939): a Batalha de Guadarrama (1936). Esta obra complexa, dura e faraónica, à boa maneira de construir espanhola, pretendia exaltar a vitória do exército franquista e do antigo regime ditatorial de cariz fascista – o Franquismo – que vigorou entre 1939 e 1975 em Espanha, após a queda da II República Espanhola (1931-1939).

O palácio do Escorial

Filipe II (1527-1598) era da família dos Habsburgos e uma das mais antigas e poderosas dinastias da Europa do seu tempo (e do mundo). Além de herdar, do Imperador Carlos V (1559), vastos territórios e povos, Filipe II recebeu a convicção de que os soberanos Habsburgos deveriam defender e promover a fé católica e que esta era a principal obrigação da dinastia. Assim, no âmbito deste legado imperial, Filipe II idealizou o palácio do Escorial, nos arredores de Madrid.

O palácio do Escorial
A Fachada frontal do Palácio do Escorial, com a estátua de San Lorenzo em destaque créditos: OLIRAF

Inicialmente erguido em memória de Carlos I de Espanha (Imperador do Sacro Império Romano-Germânico (como Carlos V), simbolizando a obra monumental o compromisso dos Habsburgos (os Espanhóis) com a missão religiosa. Era também o Mausoléu dos Habsburgos. Recentemente, ao ler a obra Os Habsburgos: ascensão e queda de uma potência global (2021), de Martyn Rady, constatei que os cantos das fachadas que circundam o complexo monástico foram coroados com quatro torres, inspiradas pelo desenho do antigo castelo-fortaleza medieval de Hofburg (Viena), datado do século XIII, residência oficial e símbolo do poder dos Habsburgos (Ducado da Áustria). Pretendia, também reproduzir, o Templo de Salomão e imitar a grelha – La Parrilla – em que o santo padroeiro do Escorial, o mártir São Lourenço, foi “assado vivo” pelos romanos no século III. Foi o seu instrumento de tortura durante o seu martírio em Roma.

Na época do “Prudente“, a vila de El Escorial era um mísero e triste burgo no sopé da Serra de Guadarrama e nas proximidade de Madrid. O Palácio-mosteiro tem um enorme jardim e uma floresta de doze mil pinheiros bravos plantados no Monte Abantos.

Monte Abantos
Paisagem fria e quase despedida do Monte Abantos. Ao fundo, na planura da Meseta Castelhana, ergue-se a cidade de Madrid com os seus icónicos Arranha-céus: o campus vertical créditos: OLIRAF

A paisagem era nua, ressequida na maior parte do ano, sob um céu sem nuvens. Era uma paisagem deserta e árida. A história contada por Martyn Rady (2021) sobre esta família peculiar é concisa mas bastante completa, profundamente informada, escrita com elegância e resulta numa leitura empolgante. Para quem cursou História e, precocemente, contabilizou-se com os Habsburgos é difícil ficar indiferente ao «espírito do lugar».

Fundado por Felipe II, após uma promessa de erigir um Mosteiro em terras espanholas fruto da vitória dos “Tercios” espanhóis sobre os franceses na Batalha de Quintín (1557) dedicada a São Lourenço, mártir que foi torturado numa grelha em brasa. Real Sitio de San Lorenzo de El Escorial é um dos monumentos arquitetónicos de Espanha que mais exalta a grandeza do “Siglo de Oro Español” (Séc. XVI-XVII) e do poder desta real figura sobre os povos hispânicos, europeus e das mais variadas latitudes do globo terrestre.

Este Palácio-mosteiro espelha a arquitetura austera e sóbria, sem grandes ornamentos e preocupações estéticas, à semelhança da real figura que idealizou a sua construção. Podemos dizer, seguramente, que é um monumento com muita personalidade.

Foi construído entre 1563 e 1584, planeado por Juan Bautista de Toledo, após a morte deste, em 1567, as obras continuam com a direção do seu colaborador: o arquiteto real Juan Herrera (1530 – 1597). Com esta real obra, Herrera deu inicio ao estilo herreriano. Ainda hoje, na Monumental Fachada da Igreja de São Vicente de Fora (Lisboa), podemos admirar a beleza do seu risco arquitetónico. Por curiosidade, o Mosteiro tem a forma geométrica de uma “parrilla”, isto é, de uma grelha. Ora, esta real construção foi sagrada em nome do mártir de São Lourenço. Um pormenor delicioso.

O Escorial não era apenas uma monumental residência real e um panteão fúnebre do ramo espanhol dos Habsburgos. Era composto por quatro mil quartos, dezasseis pátios e cento e sessenta quilómetros de corredores. Apenas um quarto do edifício era ocupado por aposentos reais. O resto era composto por uma basílica, um mosteiro com cinquenta monges Jerónimos e uma escola de teologia.

Era também um “reliquário” de Filipe II que totalizava 7422 peças, desde a Coroa de Espinhos de Cristo a fragmentos de várias partes do corpo de milhares de mártires cristãos. Há um episódio macabro para a maioria das pessoas, mas belo para os espanhóis. Da vasta coleção de mártires de Filipe II destaca-se o episódio que envolveu uma relíquia sagrada da religião espanhola: o cadáver de um monge franciscano, Frei Diego de Alcalá, e o herdeiro do “Prudente, o infante D. Carlos (1545-1568), príncipe das Astúrias. Conta-se que o pequeno e frágil D. Carlos, filho de Filipe II e Maria Manuela de Portugal, foi curado de uma doença debilitante por se ter deitado ao seu lado no leito da sua cama o cadáver de Frei Diego, que foi propositadamente desenterrado da sua sepultura para esta cura milagrosa. Este episódio ocorreu em 1562 aquando de uma queda nas escadas que causou um traumatismo craniano ao príncipe das Astúrias. Ainda hoje, o viajante poderá ver a armadura assimétrica deste infante Habsburgo espanhol na coleção de armas reais que se encontra no Palácio Real de Madrid.

Estátua de D. Filipe II (I de Portugal)
Estátua de D. Filipe II (I de Portugal) créditos: OLIRAF

Se Versalhes era o símbolo do poder absoluto (e do barroco) de Luís XV, o Escorial foi o prefácio do poder absoluto e do barroco europeu. O Escorial reflete a extensão do poder, da riqueza, influência cultural e a supremacia militar da Espanha durante o século XVI. Uma aventura monumental, artística, política e arquitetónica.

Hoje, o Escorial é bem diferente do tempo de Felipe II. Todavia, não perdeu toda a sua monumentalidade e esplendor do poder, soberanamente, do seu mentor. Reina [ainda] majestosamente. Expressa o ideal político, espiritual e bélico do monarca Habsburgo, do ramo espanhol. Parte do Escorial de Filipe II perdeu-se aquando da sua morte. Afinal, são as pessoas que fazem os lugares. Quem percorrer os corredores do Escorial poderá sentir a presença da real figura de Filipe II, apesar de omnipresente. Nada exprime melhor o poder, político e religioso, de Filipe II do que o Escorial. Todavia, o peso simbólico e o esplendor desta magnífica obra real não desapareceu. Ainda hoje, incluindo eu, milhões de visitantes ficam fascinados com a sua monumentalidade. Foi declarado Património Mundial da UNESCO em 1984.

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Artigo originalmente publicado no blogue OLIRAF