Ouvia o estalar da neve a cada passo enquanto deambulava pelos estreitos corredores do Memorial aos Judeus Mortos da Europa (ou Memorial do Holocausto), tocando suavemente nos blocos de cimento que simbolizam as vidas desaparecidas nos campos de concentração nazi. São 2711 pedras, de diferentes alturas, dispostas num campo ondulado perto das Portas de Brandemburgo e do edifício do Reichstag (Parlamento federal). Silêncio absoluto, só a minha viagem desorientada naquele labirinto sepulcral, cinzento, sem sombras, transportada para as trevas de um regime que tal como aquela instalação encarou a ordem de uma forma tão obsessiva que perdeu o contacto com a razão humana.
A obra de Peter Eisenman, inaugurada em 2005, a maior homenagem às vítimas da shoah em solo alemão, tem sido criticada por muitos que não a consideram condizente com a magnitude do crime que representa nem com a responsabilização da Alemanha pelos factos. Há, de facto, uma normalidade aparente em seu redor; é comum ver crianças a brincar às escondidas e turistas a fazer palhaçadas para selfies. Assim como muitos contemporâneos de Hitler seguiram com as suas rotinas quando este decretou a perseguição aos judeus.
A mim, não obstante, o Memorial aproximou-me dos traumas de uma cidade torturada pela História, até porque não há forma de entender Berlim sem um roteiro de psicanálise; submetendo-a a uma regressão nos locais que marcaram o seu flagelo. Não faltam monumentos para o efeito. A Topografia do Terror, implantada na antiga sede da segurança nazi – onde a Gestapo prendia, torturava e assassinava opositores políticos – conta com duas exposições permanentes imperdíveis: uma sobre as atrocidades cometidas pelas forças de segurança nazis naquele edifício e outra sobre a propaganda dos nacional-socialistas entre 1933 e 1945. É difícil não sair com o estômago virado do avesso.
Na Praça Breitscheldplatz, para os lados de Charlottenburg, a Igreja Memorial do Imperador Guilherme é um dos ícones mais representativos das consequências da II Guerra Mundial. A igreja original, edificada em 1890 por ordem do Imperador Guillherme II, foi bombardeada pelos aliados em 1943, deixando um dos maiores templos de Berlim em ruínas. Em vez de ser demolida, as autoridades de Berlim Ocidental optaram, na década de 50, por integrar os destroços do impressionante monumento de estilo romanesco numa igreja moderna. A decadência da Gedächtniskirche é ao mesmo tempo atraente e triste. Chamam-lhe “o dente podre de Berlim”. Foi naquela praça que, em dezembro de 2016, um terrorista conduziu um camião contra dezenas de pessoas no mercado de Natal, fazendo com que Berlim se voltasse a reunir ali contra a destruição e o radicalismo.
Depois da guerra, veio o Muro, que entre 1961 e 1989 dividiu a Alemanha – e o mundo – entre o Ocidente e a União Soviético. Berlim era o epicentro da Guerra Fria. Mais de um quilómetro da cortina de ferro está ainda de pé na East Side Gallery, expondo influentes murais ali pintados após a queda do muro; entre eles, o famoso beijo entre Erich Honecker, ex-Presidente da RDA e o líder soviético Leonid Brezhnev. Mais de três milhões de turistas por ano visitam o que resta do Muro de Berlim, alguns deles votantes de líderes políticos que advogam a construção de novas barreiras para separar povos e nações.
Sobre o mesmo período, o Checkpoint Charlie, bem no centro da cidade, em Mitte, ainda conta com a guarida e com a sinalização que marcavam a fronteira entre as duas Alemanhas. Há mesmo ao lado um museu que narra a história daquela passagem, letal para vários alemães de leste que tentavam a todo o custo passar para o ocidente. Berlim serve também para nos lembrar que os europeus já foram refugiados e que arriscavam as suas vidas para transpor fronteiras.
Quem chega, agora, são sírios, iraquianos e outros exilados do Médio Oriente, que encontram na transformação de Berlim inspiração para sonhar com a reconstrução dos seus países. Entretanto, vão introduzindo as suas lojas e restaurantes. Para quem gosta de comida árabe, é uma bênção. No bairro de Neukölln, o restaurante libanês Azzam serve o melhor húmus da Europa numa sala repleta, com mesas partilhadas entre refugiados e estudantes universitários alemães. É barato e para além da saborosa pasta de grão conta com maravilhosas saladas e espetadas de borrego.
Berlim mudou muito nos últimos anos. Para um alemão conservador de Munique ou de Estugarda, vai sempre a mesma cidade caótica, suja e boémia, que gasta em farra e em arte o dinheiro que o resto do país, com trabalho e disciplina, se esforça para angariar. Mas para os berlinenses a cidade já não está tão caótica, tão suja e tão boémia como antes. E eles têm pena. Derrubado o muro, no arranque dos anos 90, milhares de casas ficaram vazias e os alemães (e outros) mais rebeldes rumaram a Berlim em busca de liberdade e de rendas baixas, mas também imbuídos de uma missão de reedificação.
As paredes devolutas da parte oriental da cidade albergaram estúdios, bares, galerias de arte, comunas criativas, clubes fetichistas, discotecas gay, centros de discussão política. A cidade era estupidamente barata e livre como nenhuma outra. Todos aqueles que viveram em Berlim nessa época falam dela com um brilho nos olhos; fico sempre com a sensação de estar perante um privilegiado que acertou no tempo e no espaço da sua existência, que viu a cidade atravessar a adolescência, em que tudo é possível e se goza o presente com a certeza de ser dono do futuro.
Mas Berlim não resistiu à gentrificação; as casas ocupadas foram desmanteladas, os bares e as lojas típicas deram lugar a cadeias e a multinacionais e as galerias de arte saíram da escuridão para as ruas mais luminosas da capital. Os loucos de Kreuzberg e Friedrichshain desapareceram; não se sabe se foram à procura de outro oásis de libertinagem ou se envelheceram e se são eles que passeiam hoje os seus filhos pelos bairros e pelas margens do Rio Spree. As casas encareceram: nas últimas eleições, os principais temas de campanha em Berlim foram as rendas dos apartamentos e a escassez de creches.
Penetrou como em poucos outros sítios a cena hipster, com as barbas farfalhudas e as calças justinhas. Há um número impressionante de restaurantes e de supermercados biológicos, vegans e vegetarianos. Destaque para o Rawtastic, especializado em comida crua e cerveja sem glúten, ou o Café Tasso, que junta a comida saudável aos livros e aos concertos. As salsicharias já estão em minoria.
A cidade está na vanguarda do comércio justo e da preservação do ambiente. E ainda bem. Mas a herança do passado tortuoso reflete-se ainda em espaços que continuam a expurgar traumas e a expandir mentes, fiéis a um certo dinamismo orgiástico e ao peso do techno que Berlim celebrizou. Berghain, a melhor discoteca do mundo, é aqui. Situada numa antiga central termoelétrica da RDA, tem a pista mais famosa do mundo, ponto de passagem obrigatório dos DJ mais reputados. É conhecida pelas suas maratonas de techno – que vão de sexta-feira até à segunda seguinte –, pelo sexo livre e pela sua filosofia de secretismo.
Nunca entrei, mas já me disseram que é extremamente complicado fazê-lo; um amigo sírio contou-me que a entrada lhe foi negada oito vezes antes de, depois de profunda análise dos critérios dos porteiros, obter a indumentária adequada para o sucesso. “Comprei roupa preta da cabeça aos pés e pintei os olhos”, disse-me. Depois ficou lá dentro três dias, entre escadarias e uma infinitude de salas, dark rooms, speed, MDMA e rajadas eletrónicas. Ainda assim, clientes habituais do Berghain alegam que a discoteca também se gentrificou, substituíndo os freaks que ali se concentravam em 2004, ano da sua abertura, por turistas.
A capital alemã é pródiga em espaços genuínos, loucos até, que nunca funcionariam em nenhum outro sítio. Exemplo disso é o antigo aeroporto de Tempelhof, hoje transformado num dos maiores parques da cidade e invadido por corredores, ciclistas, skaters e pares de namorados. Poucos são os locais que se podem gabar de tamanha regeneração: em Tempelhof fizeram-se testes aos primeiros aviões, Hitler renovou-o para ser o colossal aeroporto do seu III Reich, foi base americana, aeroporto comercial da cidade, palco de corridas de carros e de cavalos.
Quando se pensava que Berlim estava dedicado em exclusivo a algas e a eliminar a lactose, que tinha chegado ao fim da História, Tempelhof transformou-se em centro de acolhimento para 7000 refugiados. E Berlim, de barba e calças justinhas, sentou-se na sua velha escrivaninha, abriu o livro de memórias e começou a escrever um novo capítulo.
Aproveite os voos a preços convidativos da TAP e planeie já a sua viagem a Berlim, uma cidade histórica com muitas estórias ainda por contar.
Comentários