A Suprema Corte dos Estados Unidos reafirmou quinta-feira, dia 23 de junho, o direito dos cidadãos de possuirem armas de fogo em público, uma decisão tomada poucas semanas depois de um novo ataque a tiros numa escola que deixou 21 mortos.

O debate continua e muitos não americanos questionam-se porque os cidadãos do país são tão apegados às armas de fogo utilizadas em massacres com uma frequência assustadora.

A resposta, segundo especialistas, está tanto nas tradições que sustentam a independência da Grã-Bretanha, quanto na crença mais recente entre os cidadãos de que precisam de armas para sua segurança pessoal.

Em duas décadas, período no qual mais de 200 milhões de armas chegaram ao mercado americano, o país passou da "Cultura das armas 1.0", onde estas eram para caça ou esporte, à "Cultura das armas 2.0", em que muitos as consideram essenciais para proteger o lar.

Esta guinada foi potencializada por uma publicidade no valor de quase 20 biliões de dólares financiada pela indústria das armas, aproveitando o medo do crime e da convulsão social, segundo Ryan Busse, ex-executivo desta indústria.

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Os massacres recentes "são o subproduto de um modelo de negócio da indústria das armas, desenhado para tirar proveito do aumento do ódio, do medo e da conspiração", escreveu Busse na revista online The Bulwark.

Armas e a nova nação

Nas décadas de 1770 e 1780 nos Estados Unidos, não havia dúvidas sobre a posse de armas.

Alegava-se que o monopólio das armas por parte das monarquias da Europa e dos seus exércitos era a origem da opressão que os separatistas combatiam.

James Madison, o "pai da Constituição", citou "a vantagem de estar armado que os americanos possuem sobre os povos de quase qualquer outra nação".

Mas os pais fundadores entendiam a complexidade do assunto: que os novos estados não confiavam no incipiente governo federal e queriam leis e armas próprias.

Estes admitiram que as pessoas precisavam de caçar e de se proteger de animais selvagens e de ladrões, mas alguns temiam que isto simplesmente pudesse aumentar a falta de leis na fronteira.

As armas privadas eram essenciais para se proteger da tirania? Uma milícia local armada não podia desempenhar este papel? Ou a milícia tornar-se-ia uma fonte de opressão local?

Em 1791, chegou-se a um compromisso no qual se constituiu o enunciado mais analisado da Constituição dos Estados Unidos, a Segunda Emenda: "Sendo necessária uma milícia bem regulamentada para a segurança de um estado livre, o direito do povo a ter e portar armas não será infringido".

Controlo de armas

Durante os dois séculos seguintes, as armas tornaram-se parte essencial da vida e do mito americano.

O professor David Yamane, da Universidade Wake Forest, explica que a "Cultura das armas 1.0" tratava-as como ferramentas para quem caçava e se defendia de animais selvagens, assim como para a conquista dos nativos americanos e do controlo dos escravos.

Mas, no começo do século XX, um país cada vez mais urbano inundava-se de armas de fogo e experimentava uma delinquência elevada.

De 1900 a 1964, segundo o falecido historiador Richard Hofstadter, o país registou mais de 265.000 homicídios por armas de fogo, além de 330.000 suicídios e 139.000 acidentes.

Em 1934, o governo federal proibiu as metralhadoras e exigiu que as armas fossem registadas e marcadas. Alguns estados adicionaram controles próprios, como proibir o porte de arma em público, visíveis ou ocultas.

E o público foi favorável: segundo o instituto de pesquisas Gallup, 60% dos americanos apoiavam a proibição total das armas pessoais em 1959.

Os assassinatos de John F. Kennedy, Robert F. Kennedy e Martin Luther King contribuiram para uma regulamentação estrita em 1968.

Mas os fabricantes de armas e a Associação Nacional do Rifle (NRA), citando a Segunda Emenda, impediram uma nova legislação que fizesse algo mais do que implementar uma restrição facilmente contornável à venda direta de armas por correio.

Segunda Emenda sagrada

Nas duas décadas seguintes, a NRA aliou-se aos republicanos para insistir em que a Segunda Emenda era absoluta na sua proteção ao direito às armas e que qualquer regulação era um ataque à "liberdade" dos americanos.

Segundo Matthew Lacombe, professor do Barnard College, conseguir isto implicou que a NRA criasse e divulgasse uma ideologia centrada nas armas e na identidade social distinta para os donos.

Estes últimos uniram-se a esta ideologia, formando um poderoso bloco de votos, especialmente em zonas rurais que republicanos procuravam arrebatar dos democratas.

Jessica Dawson, professora na academia militar de West Point, disse que a NRA aliou-se à direita religiosa, que acredita na primazia do cristianismo na cultura americana e na Constituição.

A liderança da NRA "começou a utilizar uma linguagem mais religiosa para elevar a Segunda Emenda sobre as restrições de um governo secular", explicou Dawson.

Auto-defesa

Embora esta mudança de abordagem sobre a Segunda Emenda não tenha ajudado os fabricantes de armas, que viram as vendas caírem devido a um forte declínio nos desportos de caça e tiro na década de 1990.

Isto abriu a via para a "Cultura das armas 2.0", quando a NRA e esta indústria começaram a dizer aos consumidores que precisavam de armas para se defender, segundo Busse.

Isto ocorria quando Barack Obama tornava-se no primeiro presidente afro-americano, ao mesmo tempo em que ascendia o nacionalismo branco.

"Há quinze anos, às custas da NRA, a indústria das armas de fogo fez uma jogada obscura quando começou a comercializar armas e equipamentos táticos cada vez mais agressivos e militaristas", acrescentou.

Muitos estados responderam à preocupação de um suposto aumento da criminalidade ao permitir às pessoas possuir armas em público sem permissão.

De fato, a criminalidade violenta tendeu a diminuir durante os últimos vinte anos, embora os homicídios relacionados às armas de fogo tenham aumentado nos últimos anos.

Isto, assegura Yamane, da Wake Forest, foi um ponto de inflexão-chave para a "Cultura das armas 2.0", que impulsionou as vendas de armas, que pessoas de todas as raças compraram devido ao medo exagerado com a violência interna.

As vendas dispararam desde 2009, superando mais de 10 milhões ao ano desde 2013, principalmente fuzis de assalto AR-15 e pistolas semi-automáticas.

"A maioria dos donos de armas hoje, especialmente os novos, destacam que a auto-defesa é a razão principal para possuir uma arma", diz Yamane.