
Madalena Lima e Sara Pacheco estão numa viagem artística de seis meses pela América do Sul onde a sua coreografia passa por projetos de voluntariado, motivados sobretudo por mexer no panorama local, tanto a nível literal, através da arte, mas também figurativo, com o impacto que pretendem causar por onde passam. No instagram, podem seguir através do @dos.en.movimiento.
De um ponto de vista linguístico, a expressão “sentimientos encontrados” refere-se à vivência de emoções aparentemente contrárias face a uma mesma experiência, pessoa ou objeto. Ela ilustra aquilo que pode ser percecionado como um desencontro entre aquilo que se sente e que se esperava sentir, capturando as antíteses sentimentais que experienciamos tanto no momento da partida como ao longo do nosso primeiro mês de viagem.
Sara
No início de 2024, a perspetiva de passar seis meses a viajar e a explorar interesses pessoais que a rotina e as obrigações tinham lentamente relegado para segundo plano enchia-me de entusiasmo. Nessa altura, vivia em Bruxelas e, embora pudesse imaginar-me a criar raízes por lá, sabia que Bruxelas permaneceria no mesmo lugar, mas a oportunidade de viajar com uma amiga nesta fase da minha vida poderia não se repetir. Contudo, com o passar do tempo, as dúvidas e a insegurança acabaram por se instalar quase a tempo inteiro. Cada vez mais, parecia que o gap year que sempre sonhara realizar não fazia sentido no momento de vida em que me encontrava. “Não quero ser nómada, saltitar de um lugar para o outro, ter constantemente de responder à pergunta ‘como te chamas e de onde vens?’”, repetia. À medida que a partida se aproximava, sentia estar a forçar-me a fazer algo que não se encontrava alinhado com a minha intuição. Ainda assim, reuni forças e tomei a decisão de embarcar em direção ao Rio de Janeiro, permitindo-me a flexibilidade de regressar antecipadamente, caso se mostrasse necessário.
Madalena
Já eu, posso dizer que vivi um processo inverso. Os momentos ao longo da preparação da candidatura e na iminência da partida foram marcados por entusiasmo e antecipação face ao que os próximos meses poderiam oferecer. Estava a trabalhar intensamente para poder poupar para despesas adicionais e ao longo do meu quotidiano não podia parar de imaginar como seria “o melhor semestre da minha vida”. Escusado será dizer o que se instalaria: um sem fim de expectativas, construídas em mim durante semanas, meses (quem sabe anos). Assim, se antes de partir navegava um mar de certeza e tranquilidade, ao deixar Portugal senti-me repentinamente assolada por uma dúvida: “O que é que me espera do lado de lá? De que forma é que aquilo que imaginei se pode vir a concretizar?”. Não cheguei a encontrar uma resposta, por isso parti para terras brasileiras saltitando entre a hesitação e a excitação.
Sara
Após aterrar no Brasil, vim a perceber que o que sentia anteriormente era, na verdade, medo. Medo da insegurança de que tanto me alertavam, de um cansaço que não parecia parar de se acumular, do receio de que a viagem, em vez de me ajudar a focar nos meus objetivos, acabasse por me dispersar, e, sobretudo, de estar a viver um gap year na América do Sul, mas, ao mesmo tempo, desejar estar a viver algo diferente. A Cidade Maravilhosa recebeu-me com paisagens deslumbrantes e reencontros com grandes amigos, e, aos poucos, fui assimilando a realidade de que estava do outro lado do oceano, com seis meses pela frente dos quais dispor, se assim o quisesse. O Rio ofereceu-me uma semana transformadora, mas também a transição suave de que necessitava para que, ao chegar a Buenos Aires, me sentisse confiante de ter tomado a decisão certa em partir. Foi nesse momento que escolhi encarar o meu gap year como um período especial, mas, ainda assim, comum, reconhecendo o paradoxo entre o desejo de aproveitar cada momento e a aceitação de que, inevitavelmente, também teria dias desafiantes ou até mesmo ordinários. Creio que essa mentalidade me permitiu viver com mais leveza e acolher, sem culpas ou pressões, os vários sentimentos que foram surgindo ao longo do caminho.
Madalena
Já em viagem, a dúvida foi-se esbatendo e deu lugar a uma necessidade de viver ao máximo o imenso turbilhão de momentos que todos os dias se somavam uns a seguir aos outros. Sabia, racionalmente, que nem tudo se poderia concretizar, mas, ainda assim, parte de mim vivia inquieta: afinal, tinha deixado a minha vida em Portugal para ter a “melhor experiência da minha vida”. Na chegada ao Rio de Janeiro sentia-me no promontório de uma nova vida que se edificava à minha frente a uma velocidade estonteante. Já em Buenos Aires, continuava a movimentar-me pelas ruas de Palermo sentindo sempre à espreita uma expetativa omnipresente. Constando a impossibilidade de viver de acordo com essa expetativa, passei a sentir um confuso cocktail de sentimentos: contracenaram a felicidade e o entusiasmo com a saudade e o receio. Receio de que não mudasse, de que fosse assim para sempre, de que partir não tivesse sido a escolha certa. Sentia-me aturdida pela contrariedade das emoções que sentia, pela sensação de que deveria desfrutar mais da imensidão de experiências que me estava a ser proporcionada. Eventualmente, e como em qualquer outra experiência de vida, as emoções, por mais intensas que sejam, revelam-se sempre passageiras. Trocando a imensidão de Buenos Aires pela tranquilidade bucólica do norte da Patagónia, também o meu estado de espírito se transmutou. Mudaram as tonalidades e os sons e, uma vez mais, a deslocação geográfica acompanhou de perto uma movimentação emocional profunda. Passei a sentar-me com as minhas perguntas sem sentir o anseio de lhes responder imediatamente e apercebi-me que tudo aquilo que este gap year me poderia oferecer era isto: uma oportunidade de crescer, de me conhecer melhor e, através de mim, conhecer o “outro”.

Ao percorrer rapidamente a história que cada uma de nós viveu até agora, apercebemo-nos que, independentemente da vulnerabilidade que uma pessoa possa ter face a esta espécie de turbulências emotivas, uma viagem é, por si só, uma experiência particularmente propícia a despertar uma pluralidade de sentimentos. Enquanto viajantes, somos constantemente expostos a estímulos e dificuldades desconhecidas. A cada dia, colocamo-nos questões às quais não sabemos responder e procuramos encontrar respostas às quais não conseguimos dar forma. É precisamente por apresentar tantos desafios que a viagem transporta um potencial transformador tão profundo.
Claro que essa transformação nem sempre é fácil, pelo que, à primeira vista, lidar com sentimentos contraditórios (“sentimientos encontrados”) durante um gap year pode parecer um labirinto emocional complexo de navegar. Ainda assim, como tudo na vida, acreditamos que essa ambivalência pode ser encarada como uma oportunidade valiosa de reflexão. Cada momento de caos encerra o potencial de nos aproximar do melhor que a viagem nos oferece: o movimento interno que nos leva do conhecido que fomos para o desconhecido que vamos passar a estar. Se, para uns, a transição pode ser suave e prazerosa, para outros, pode revelar-se particularmente assustadora e turbulenta. Mas, em qualquer caso, ela é natural e necessária para que possamos vivenciar a incrível oportunidade de desconstrução e reconstrução de identidade que uma viagem nos proporciona. A viagem, nesse sentido, funciona como um espelho, revelando partes de nós que talvez nunca tivéssemos conhecido. É neste processo que os sentimentos, antes desencontrados, se podem começar a alinhar numa nova harmonia.
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