Bilhete-postal enviado por Hélder Santos / @onthewalktravel

Tudo começou numa mesa de um restaurante onde estávamos a jantar, entre amigos, a falar de viagens. Todos já tínhamos viajado, mas nunca os quatro. Surgiu então a ideia de fazermos uma viagem os quatro! Todos já tínhamos ouvido falar do Iron Train da Mauritânia devido a alguns viajantes que já por lá passaram. Estava decidido, era esse o nosso destino.

Começamos a explorar voos, mas estavam todos com preços altíssimos, até que vimos um voo para Marrocos a 15 euros, mas havia um problema, ficava a 2300 quilómetros da capital da Mauritânia.

Depois de muita conversação, decidimos que iríamos elevar a nossa aventura: de Marraquexe a Nouakshott à boleia, em seis dias. Estávamos cientes que iríamos ter de atravessar o deserto do Saara na vertical, mas, para a nossa sorte, havia uma estrada, na sua maioria, de alcatrão que ia de Marrocos à Mauritânia, sendo essa a nossa única preparação para a viagem: ver, por alto, no Google Maps se haviam estradas para o destino.

Chegou então o dia do começo desta jornada. Aterramos no aeroporto de Marraquexe às 12h30 do dia três de janeiro e começamos a caminhar uns quatro quilómetros para sair do centro da cidade, visto que apanhar boleias em cidades é extremamente difícil.

De boleia em boleia, conseguimos no primeiro dia fazer 20 quilómetros. Ficamos numa bomba de gasolina completamente isolada e começou aí o nosso primeiro percalço. Estávamos no meio do nada, às 23h30, sem sítio onde dormir (e com a bomba de gasolina fechada). Visto que tínhamos connosco sacos de cama, ficamos a dormir na rua. O frio durante a noite foi horrível, estávamos deitados em cima de cimento e eu já nem sentia as costas de tanto frio que tinha.

Assim se passou a noite, no dia seguinte começamos logo cedo nas boleias e lá conseguimos acabar o dia em Agadir a 230 quilómetros de onde começamos. Foi um dia tranquilo, mas a este andar numa chegaríamos ao nosso destino a tempo!

Passamos a noite num hotel, logo de manhã, de dedo esticado na berma da estrada, conseguimos a nossa primeira boleia, uma carrinha de caixa aberta. Fomos, obviamente, na parte de trás.

Fomos deixados, então, fora das cidades, e, a partir de agora, o desafio iria ficar mais intenso. De boleia em boleia, sete pessoas num carro de cinco lugares, uma autocaravana, uma carroça de uma mota, lá conseguimos chegar às portas do deserto, uns portões enormes que dão entrada ao famoso Deserto do Saara.

Enquanto estávamos a tirar fotografias e filmagens, o Rafael foi tomar um café numa carrinha típica, e, em conversa com o vendedor, explicou a nossa viagem, recebendo como resposta: "se não tiverem onde dormir hoje, podem ficar em minha casa".

Como ainda eram 16h, decidimos tentar mais boleias, sem sucesso. Eram por volta as 19h, estávamos a caminhar pela aldeia até que somos abordados por dois homens que nos convidaram para ir tomar chá na sua humilde loja. Passamos uns 45 minutos em conversa e a beber chá num espaço acolhedor e fantástico. Ele era colecionador de peças antigas, à nossa volta víamos armamento antigo, facas esculpidas, anéis de pedras... incrível.

Os marroquinos têm a fama de gostar de negociar e trocar, e, neste caso, não foi diferente. O dono da loja propôs fazer uma troca, tinha com ele quatro lenços para a cabeça, de boa qualidade. Começamos as trocas! Deixamos lá duas t-shirts da Primark, uma lanterna da Temu e uma garrafa térmica. Foi uma boa troca.

Como prometido, fomos dormir à casa do vendedor de café, ficamos com o número dele e acabou por nos ir buscar à loja onde estávamos. O nome dele era Abubacar, mas não tenho a certeza se é assim que se escreve. Mal sabíamos nós que seria uma das melhores pessoas que iríamos conhecer nesta jornada.

Na chegada à casa dele, o mesmo começou por se desculpar por ter uma casa "humilde" comparada, talvez, com outras da zona.

À boleia no deserto do Saara com destino ao
À boleia no deserto do Saara com destino ao Na casa de Abubacar créditos: On the Walk

Quando entramos em casa, as mulheres (mãe, irmã e cunhada) tiveram de se retirar para uma sala, devido à religião não poderíamos ter qualquer contacto com elas. Entramos na "sala dos convidados" e tínhamos à nossa espera uma mesa com bolachas, sumos, batatas, pão...

Estávamos encantados com a hospitalidade daquele povo

Entramos na sala e o irmãozinho, de seis anos, lavou-nos as mãos e chegou-nos perfume, para limpar as energias.

Começamos a comer, enquanto tínhamos boas conversas com o Abubacar. Passado uns 20 minutos, quando menos esperávamos, ele apareceu à nossa frente com o jantar! Um tangine espantoso cozinhado para nós. Estávamos encantados com a hospitalidade daquele povo. Já não era a primeira vez que nos ofereciam coisas, mas desta magnitude, nunca.

No dia seguinte, o pai dele levou-nos para a última bomba de combustível da cidade. Sabíamos que de 100 em 100 quilómetros iríamos encontrar pequenas aldeias, o desafio seria chegar até lá.

Começamos a manhã com uma das melhores boleias da viagem. Um casal alemão que estava a aproveitar a reforma numa viagem por África num autocarro transformado em casa com rodas. Eles eram simplesmente amáveis! Criamos laços fortes com eles e assim foram os nossos próximos 300 quilómetros.

Ficamos cinco horas ao sol do deserto, sem nenhuma sombra. Nenhum carro parava

Eles iam passar a noite na costa, então deixaram-nos na berma da estrada e seguiram viagem. Nós não estávamos preparados para o que aí vinha. Ficamos cinco horas ao sol do deserto, sem nenhuma sombra. Nenhum carro parava, poucos olhavam. Houve uma autocaravana da Áustria que parou e nos tirou uma fotografia, como se fôssemos animais.

Como com quatro pessoas não estava a resultar, eu e o Ruben escondemo-nos para ver se com apenas duas pessoas os carros paravam e assim foi. Carro parado, e disse que nos podia levar aos quatro até à próxima aldeia. Finalmente!

De boleias em boleias, no dia seguinte lá fomos indo por estrada fora até que chegou a um momento em que nos tivemos de dividir, e este foi o único "problema" que tivemos entre nós. Por falta de comunicação, a outra "equipa" não percebeu que nos tínhamos dividido e acabamos por fazer 300 quilómetros sem eles, tudo sem rede, nem wifi.

Passadas três horas, conseguimos entrar em contacto e eles ficaram um pouco chateados. Afinal, estávamos completamente separados, a 300 quilómetros de distância, até que no caminho deles apareceu ao que chamaram de "um anjo". Um senhor na faixa etária dos 50 anos, que sem falar inglês, por gestos, ofereceu o almoço ao Ruben e ao Rui (equipa que tinha ficado para trás).

À boleia no deserto do Saara com destino ao
À boleia no deserto do Saara com destino ao Sem gasóleo no deserto créditos: On the Walk

Eles comeram e foram levados até ao final da aldeia... sem esperança, às 18h e de dedo esticado na berma da estrada, iam tentar chegar à nossa localização. 20 minutos se passaram até que parou uma carrinha senegalesa em direção à Mauritânia naquela noite. Eles foram ter connosco e seguimos viagem pelo meio do deserto.

600 quilómetros sem nenhuma aldeia, só deserto

Agora sim, 600 quilómetros sem nenhuma aldeia, só deserto. Como a carrinha só tinha três lugares, eu e o Rafael fomos na mala. Até que a carrinha para. Sabíamos que não tínhamos chegado ao destino. Quando saímos cá fora vimos que era o Rui que estava a conduzir, só ouvimos a frase "puto, ficamos sem gasolina no meio do deserto". Caiu-nos tudo... de relembrar que eram duas da manhã.

Começamos a empurrar a carrinha para encontrar um local para a encostar. Assim se passaram dois quilómetros até que passa um carro, que para e nos pergunta se precisávamos de ajuda. O dono da carrinha foi com ele buscar combustível e assim se resolveu.

Na manhã seguinte fomos para a fronteira. No dia anterior, tínhamos feito 900 quilómetros à boleia. Foi o dia que nos salvou de chegarmos a tempo.

Passamos a terra de ninguém, uma extensão de dois quilómetros que não pertence a ninguém. Podes matar ou morrer sem que haja qualquer tipo de consequência. Correu bem. Já dentro da Mauritânia apanhamos uma boleia para a capital.

Tínhamos, finalmente, concluído a travessia do Saara à boleia. Agora, estava na hora do segundo desafio. O comboio.

É completamente proibido e ilegal fazer o comboio

Apanhamos uma van de oito horas até Choum.

É completamente proibido e ilegal fazer o comboio. Mal chegamos à aldeia de Choum, onde ele iria parar, fomos a correr para uma casa abandonada. Lá esperamos seis horas até que o comboio viesse. Connosco estava também um local que iria embarcar, visto que era a única forma de pessoas locais conseguirem ir à cidade buscar mantimentos. Choum é uma aldeia a oito horas de viagem da capital, no meio do deserto.

O comboio parou era uma da manhã, fomos agachados pela areia para a polícia não nos ver. Era noite e não podíamos ter nenhuma luz ligada. Aconteceu tudo muito rápido, começamos a correr, escondemo-nos nos vagões de ferro, lanternas apontadas para nós, mas sem nos ver, estávamos camuflados pelo ferro dentro do vagão. A polícia deu duas pancadas no nosso vagão para ver se estava alguém. Conseguimo-nos conter, até que o comboio começa a andar.

Estávamos no Iron Train da Mauritânia, o comboio mais perigoso do mundo.

Assim ficamos 16 horas em cima dele, sem água nem comida. A noite foi gelada e o calor do dia arrasador.

o maior destaque desta viagem foram as pessoas

Conseguimos! Oficialmente, dos poucos portugueses a embarcar neste comboio.

Todavia, o maior destaque desta viagem foram as pessoas, com a sua forma carinhosa de nos tratarem tão bem.

À boleia no deserto do Saara com destino ao
À boleia no deserto do Saara com destino ao Iron Train da Mauritânia créditos: On the Walk

Esta aventura vai ser divulgada, a partir de fevereiro, numa pequena série que podem acompanhar no canal de Youtube On the Walk