Se é verdade que um filme não consegue substituir uma viagem, nem por isso o bom cinema deixa de ser uma das melhores alternativas que temos a um avião para experimentar alguns recantos do nosso mundo.

É o caso de “Dias Perfeitos”, do realizador alemão Wim Wenders, que nos leva até Tóquio para acompanhar o dia-a-dia de Hirayama (desempenhado por Koji Yakusho), um dos mais previsíveis e dedicados funcionários de limpeza da rede pública de sanitários da capital japonesa. Assim mesmo, sem mais surpresas ou grandes desvios na história.

Seja qual for o seu trabalho, o que pode ter de tão interessante a rotina de um homem apenas? Tenho procurado a resposta a essa pergunta desde que vi o filme (já duas vezes) no cinema e só me ocorre uma conclusão: Tóquio. O minimalismo e a humildade de Hirayama (condensados pela sua intencional mudez), a par do seu gosto musical, são essenciais para gerar empatia, e até um bocadinho de idealização da nossa parte, mas a repetição monótona dos seus dias não seria a mesma coisa noutra cidade menos organizada e orgulhosa dos seus WCs públicos (no centro de uma campanha de divulgação que serviu de ponto de partida para fazer esta película).

o que pode ter de tão interessante a rotina de um homem apenas? (...) só me ocorre uma conclusão: Tóquio

Para uma megametrópole de 14 milhões de habitantes, é espantoso que Tóquio emane tamanha calmaria, que Wenders procura sublinhar aqui e ali através de pequenas subtilezas. A que mais me chamou à atenção: Hirayama nunca tranca a bicicleta nas suas deslocações. É cinema, eu sei, mas quem não desejaria viver assim, em duas rodas e despreocupadamente, numa grande cidade portuguesa? (Nem tudo é exageração da sétima arte, como nos contou recentemente o Pedro Vale, a passar o seu gap year em Tóquio, que diz ter encontrado uma cidade livre de beatas nas ruas.)

A par da cultura cívica dos japoneses, a compacta artificialidade de Tóquio beneficia ainda das suas "ilhas" de natureza, onde Hiyarama aproveita para almoçar todos os dias na companhia das árvores e saborear os jogos de luz desencadeados pela brisa (há um termo japonês para isso: komorebi). É um dos pontos altos no dia do protagonista e um momento de simplicidade que faz deste filme, como alguns críticos de cinema já notaram, também uma ode à beleza que pode ser encontrada mesmo num mar de betão.

Dias perfeitos
Um cartaz do filme "Dias perfeitos" afixado nas ruas de Lisboa créditos: Pedro Neves

Não é a primeira vez que Wim Wenders põe um personagem a abrir caminho pelos meandros de uma cidade. O seu “Lisbon Story” (1994) é uma referência para os namorados de Lisboa. Nesse postal lisboeta, seguimos um técnico de som deslumbrado com a capital portuguesa e os seus rumores (do tinido dos elétricos da Carris à voz mágica de Teresa Salgueiro, passando pelo murmúrio constante dos veículos na ponte 25 de abril). Na Tóquio de Wenders, pelo contrário, é o silêncio que se destaca. É a ausência de ruído, por exemplo, que permite a Hirayama acordar, todos os dias à mesma hora da madrugada, ao som da varredura das folhas nas ruas do seu bairro.

Sabem aquela sensação que temos quando visitamos um amigo numa cidade nova e podemos confiar por inteiro no seu sentido de orientação e gestão de tempo? "Dias perfeitos" podia ser o equivalente cinematográfico pela forma como nos conduz por Tóquio. A própria história evidencia isso mesmo quando nos dá a conhecer a sobrinha de Hirayama, que a certa altura pede para acompanhar o tio na sua jornada de trabalho. Que prazer, participar assim, sem esforço, e por algumas horas, na rotina de outra pessoa, descobrindo os seus gestos e locais preferidos (de jardins a livrarias). Se concordarem, deixem-se levar por este filme.

"Dias perfeitos" está em exibição nas salas de cinema nacionais.