A Lisboa Backyard Ultra é uma corrida anual de ultramaratona na qual os participantes são desafiados a percorrer no tempo máximo de uma hora um circuito de 6.7km no interior do parque florestal de Monsanto. Não parece muito difícil dito assim, até percebermos que os corredores precisam de repetir a volta quantas vezes for necessário até, por fim, só restar um. Este ano, foram precisas 26 voltas (um recorde) até isso acontecer.

A prova deste sábado começou às 08h da manhã com 39 atletas na linha de partida e só terminou no domingo, depois de Sérgio Catarino, com 42 anos de idade, completar uma volta já sozinho na competição, decorridas 25 horas e 48 minutos, durante as quais só pôde descansar entre o final de cada volta e o começo, à hora certa, da seguinte.

Passados alguns dias desde o seu espantoso feito físico, colocámos-lhe algumas perguntas sobre o tempo que passou a correr sozinho no meio da floresta lisboeta e o que considera que o ajudou a superar o desafio. O enfermeiro, natural de Proença-a-Nova e a viver na Madeira desde 2003, garante que nunca deixou de acreditar que iria resistir até ao fim, nem mesmo quando perfurou a mão numa vedação para evitar uma queda.

Temos que acreditar, porque eu nunca ganhei nada e foi a primeira vez que eu disse que iria a Lisboa e ia vencer. E acreditei do princípio ao fim.

SAPO Viagens: Sérgio, conta-nos pouco sobre ti e o tipo de corredor que és.

Sérgio Catarino: Defino-me como um corredor de endurance. O meu foco são corridas que durem muito tempo, nas quais estou a ser constantemente desafiado e a chegar a um limite onde as minhas decisões têm um peso. Tenho que estar desde o início a prever e já a defender-me das dificuldades, e quando elas acontecem ter que as resolver. Isso normalmente acontece em provas muito longas e é isso que realmente me dá prazer.

Por outro lado, em termos de competição, onde tenho tido os melhores resultados, até agora, tem sido em orientação. Neste momento, sou campeão regional em título de orientação em ambiente urbano e floresta, escalão HB, que consiste em corrida curta, na qual tenho que estar constantemente atento na leitura do mapa e na tomada de decisões. No fundo, sou um atleta de trail, de endurance. Quanto mais longa e maior a prova, melhor.

Sérgio Catarino no Lisboa Backyard Ultra 2024
Sérgio Catarino no Lisboa Backyard Ultra 2024 Sérgio Catarino, à esquerda, no momento da sua consagração como vencedor do Lisboa Backyard Ultra 2024, acompanhado do vencedor da edição de 2023, Alexandre Andrade créditos: Pedro Neves

Como vieste a participar na Lisboa Backyard Ultra 2024?

No início deste ano, em abril/maio, fiz uma longa viagem pelo Nepal e, logo depois, fiz uma prova na Tailândia. Quando cheguei a Portugal, decidi fazer a Backyard de Braga. Fui lá para me divertir, para conviver com a malta que já tinha conhecido noutras provas anteriores e também para aproveitar o treino de altitude que tinha feito e ver como me sentia. Mas não fiz um resultado brilhante, fiquei em 10º e não tive apuramento para a seleção, que era a minha ambição. Estive na seleção nacional de Backyard em 2022 e, naturalmente, pensei que, mesmo não tendo treinado o suficiente para isso, que até podia acontecer. Não aconteceu. Como não tinha nenhum desafio para o último semestre do ano, comecei a pensar em ir a Lisboa.

O incentivo do meu clube foi decisivo, assim como as picardias entre a malta da Backyard, que está sempre a incentivar e a demonstrar as suas capacidades. Lisboa até acaba por ter um percurso mais adequado às minhas características, uma vez que faço trail e estou habituado a desnível. Assim, haveria a hipótese de eu ter um bom resultado ali.

Na chegada à meta, referiste os três meses de preparação que passaste para chegar até ali. Podes contar o que envolveu a preparação para esta prova?

O foco inicial foi sempre “se vou a Lisboa é para vencer”, por isso comecei a fazer os meus treinos, com os sacrifícios naturais de todos os corredores que têm de abdicar do seu tempo de descanso para treinar. E no meu caso, como eu trabalho muitas horas por semana, é sempre imensamente desafiante encontrar algum tempo para treinar. Os sacrifícios acabam por ser, por exemplo, entrar no trabalho às 08h da manhã, sair às 10h da noite, chegar a casa, comer alguma coisa e fazer bicicleta até à 01h da manhã. Ou acordar às 05h da manhã para ir correr e depois fazer 16, 17, 18h de trabalho a seguir.

O meu tempo com a família acabou por não ser o que sofreu mais, porque eu decidi que queria fazer esta preparação sem que a minha família passasse sem mim, sem a minha presença. Tenho uma bicicleta estática em casa, e uma passadeira, pelo que acabei por fazer alguns treinos dentro de casa com a família. A fazer bicicleta com o meu filho ou a minha namorada a andar na passadeira. Acabaram por ser momentos em família.

Nunca pensei em algum momento que eu iria sair dali sem ser o vencedor. Nunca. Nunca tinha ganho nada. Para uma pessoa que está habituada a ganhar é fácil dizer que vai ganhar. No meu caso, não.

Como correu a prova em si? Houve algum momento mais difícil em que tenhas considerado desistir?

A prova em si correu como eu planeei. Planeei bastante bem a prova. Tive a sorte do meu corpo corresponder àquilo que eu esperava. Nunca pensei em algum momento que eu iria sair dali sem ser o vencedor. Nunca. Nunca tinha ganho nada. Para uma pessoa que está habituada a ganhar é fácil dizer que vai ganhar. No meu caso, não. Nunca tinha ganho nada, mas desde o primeiro momento em que eu assumi que ia a Lisboa não havia plano B. E em prova continuou a ser isso. Só havia um plano. E o plano era ganhar. E a estratégia passou por aí. Foi poupar-me ao máximo, sempre, sempre. O menor desgaste energético possível. Tentar compensar as perdas energéticas e de fluídos através de um plano nutricional que fiz e que, aparentemente, resultou, e foi ser fiel ao meu plano.

Claro que surgem dores, surgiram problemas, houve uma altura em que tive de fazer 3h de pausa alimentar porque estava a começar a sentir-me enjoado. São problemas naturais que acontecem nestas provas muito longas e quando já temos alguma experiência sabemos que isso acontece.

Como eu costumo dizer, já sei que vai doer, já sei que vou ficar enjoado, já sei que vou ter este e aquele problema. É só aceitar, respirar fundo e tentar gerir, até porque eu já estava à espera. Foi aceitar que as dificuldades iam acontecer, mas que isso não me ia impedir de lutar pelo sonho. E a prova acabou por correr muito bem. Eu tinha feito um planeamento para 40 horas, algo utópico claro, mas o meu real objetivo da prova sempre foi fazer um mínimo de 30 voltas. Em termos nutricionais, de hidratação, de mudas de roupa, foi tudo planeado, o que iria fazer a cada hora. E foi isso que aconteceu. A prova acabou por durar 26 horas, mas eu penso que iria ainda aguentar mais algumas horas por ali. Foi um dia bom, em que correu tudo bem. Estou muito feliz com isso.

Nas últimas voltas, só ficaste tu e outro corredor. Como foram essas voltas finais da competição a dois? Surpreendeu-te a duração total da prova?

Foi algo curioso. Nunca me vira sozinho antes numa prova com outro corredor a competir pela vitória. Lembro-me de pensar nisso e decidir que iria manter a minha forma de estar em prova. Passei grande parte do tempo a brincar com as pessoas, a ser brincalhão, a ajudar outros na medida do possível, e como o outro atleta era muito mais calado do que eu, e estava na sua bolha, decidi simplesmente dar-lhe espaço.

Cumprimentei-o ao início de todas as voltas, claro, mas não conversámos mais. Houve uma volta, a segunda em que estávamos sozinhos, creio, em que ele me desejou boa sorte e eu a ele e não trocamos mais uma palavra, até à volta em que ele desistiu e veio falar comigo, para dizer que não iria continuar. O grande desafio daquelas últimas voltas juntos foi realmente desligar que era só eu e ele. O foco era sempre o mesmo: eu vou ser o último e vou continuar aqui a desfrutar o tempo até ele desistir.

Tinha preparado a prova para fazer no mínimo 30 voltas. Desliguei um bocadinho que era uma competição direta e passei a focar-me mais no eu queria fazer, as 30 voltas, e consciencializar-me disso. O problema seria se a gente tivesse realmente chegado às 30... penso que aí seria muito mais difícil de gerir tudo.

Chegaste à meta com a mão lesionada, o que aconteceu?

Foi na volta número 21. A 50 metros da meta, perdi o equilíbrio e para me não cair desamparado agarrei-me a uma vedação de arame. E o arame ficou com a minha carne das mãos. Foi uma ferida. Em um minuto e meio fiz um penso rápido, a ligadura era muito grande, não havia tempo para cortar e eu fiz os possíveis. Na volta seguinte, a organização questionou-me se eu queria trocar aquilo por uma coisa mais pequenina e eu disse "não, não, é deixar estar". No fundo, foi aceitar que havia dificuldades e siga para frente que isto ainda não acabou.

O som dos pássaros, a vegetação, opá, gostei imenso, imenso do sítio. Na minha opinião, eu não tirava a prova dali. Acho que realmente é um sítio lindíssimo e acho que quem vive em Lisboa deve aproveitar Monsanto.

Passaste um dia a correr em Monsanto. Viste o miolo do parque a todas as horas do dia. Em que reparaste? O que achaste do parque? Já tinhas corrido em Monsanto?

Não conhecia Monsanto, eu conheço muito pouco de Lisboa. Tinha uma ideia, posso afirmar hoje, errada do que era Monsanto e fiquei agradavelmente surpreendido. Realmente é um sítio fantástico para fazer desporto. Lembro-me de estar a correr e pensar, imensas vezes, a pena que tenho a cidade do Funchal não ter uma zona verde no seu interior, ou no meio da cidade, onde pudéssemos fazer desporto. Também tenho algumas ideias em relação as pessoas que usam Monsanto para outros fins, mas a verdade é que as pessoas respeitaram o espaço dos atletas e nunca me senti inseguro.

Ciclovia em Monsanto
Ciclovia em Monsanto Os participantes do Lisboa Backyard Ultra correram às voltas num circuito de 6.7km no Parque Florestal de Monsanto, assinalado através de pequenas faixas coloridas penduradas nas árvores créditos: Pedro Neves

Mesmo tendo passado imensas horas sozinho, que foi a minha estratégia, de ser mais lento que os outros, Monsanto foi um sítio calmo, que gostei imenso. Não parecia mesmo que estava no meio da capital. Foi fantástico o facto de termos constantemente uma brisa fria, sobretudo nos sítios mais descobertos sentia-se o calor, mas em corrida sentia-se sempre uma brisa levemente fresca. Foi realmente fantástico. O som dos pássaros, a vegetação, opá, gostei imenso, imenso do sítio. Na minha opinião, eu não tirava a prova dali. Acho que realmente é um sítio lindíssimo e acho que quem vive em Lisboa deve aproveitar Monsanto. É muito bonito mesmo.

Como se compara a Madeira, onde treinas, com o percurso de Monsanto?

Comecei a correr há cerca de 11 anos na Madeira, comecei com trails curtos até chegar às ultras. E é interessa como esta prova tem desnível, o Alexandre Andrade [o vencedor do Lisboa Backyward Ultra 2023] diz que é a prova talvez mais difícil de Portugal devido ao seu desnível. Como na Madeira é só sobe e desce, o meu tipo de treino é exatamente isso. E como em casa tenho um habitat perfeito para simular a prova de Monsanto, foi muito bom. Os treinos foram muito focados em fazer desnível. Não foi tanto rolar, mas habituar o corpo às pancadas das subidas e das descidas. E claro que, está visto, teve os seus frutos.

No momento da tua consagração, referiste que "a gente tem de acreditar para conseguir". À partida, qual era a tua expetativa para esta prova?

Temos que acreditar, porque eu nunca ganhei nada e foi a primeira vez que eu disse que iria a Lisboa e ia vencer. E acreditei do princípio ao fim. E acreditei não por ser o melhor atleta de todos os que estavam presentes, porque garantidamente que não sou. Tem lá atletas que são muitos melhores do que eu. Não tenho dúvidas algumas disso. Mas eu sabia que as minhas outras características, as minhas outras competências poderiam marcar a diferença. E foi isso que eu tentei fazer, usar as minhas partes fortes, as minhas características para ir o mais longe possível. E nunca deixar de acreditar. E realmente, não houve um momento que eu pusesse em questão que iria terminar a prova. Foi acreditar, acreditar, acreditar. E é tão bom quando é assim.

Como se descansa depois de passar 26 horas a correr?

Fiquei muito feliz, mas depois chegamos a casa, foi basicamente tomar um banho, relaxar a falar com a malta, comer qualquer coisa e dormir uma soneca de 02h30. Jantei e voltei para a cama, até porque havia um avião para apanhar às 05h30 da manhã. Foi um esforço físico extenuante, pelo que, enquanto estive em Lisboa, o festejo foi desfrutar daquela paz interior de objetivo alcançado. E depois dormir. E descansar, até porque no dia seguinte à prova apanhei o avião de regresso à Madeira e às 15h entrei de serviço para trabalhar. Não houve grande espaço para festejos. Fico muito feliz por as pessoas me darem os parabéns, até porque não estou habituado e é bom quando temos reforço positivo. E em segundo lugar, pá, porque significa que o facto eu ter acreditado teve os seus frutos.

O que se segue para ti?

Em primeiro lugar, o grande objetivo é organizar um backyard aqui na Madeira. O meu primeiro foco vai ser esse. Quero muito que se faça aqui. Já fizemos aqui algumas experiências. Teve boa adesão, as pessoas mostraram curiosidade e eu queria muito que houvesse uma prova do género aqui na Madeira. Para 2025-26, vou participar no maior número possível de backyards em Portugal, daqueles em que não tenha participado. E em 2027, pretendo fazer a Transpirineia, que é uma prova nos Pirenéus franceses com 900 quilómetros de extensão e 85 mil de desnível. Uma longa loucura, portanto.