“Lá vai Serpa, lá vai Moura/ As Pias ficam no meio/Em chegando à minha terra/Não há que haver arreceio”, canta em uníssono o grupo, de quase 30 homens, formado no interior do espaço.
Logo ali ao lado, em cima do balcão de mármore, pequenos copos de vinho e pratos recheados com queijo e paio aguardam pela pausa na cantoria, prontos para “olearem” as gargantas e “aconchegarem” os estômagos.
A televisão da sala está desligada. O “filme” que interessa é o do ensaio do Grupo Coral e Etnográfico “Os Camponeses” de Pias, que treina o alinhamento das “modas” do próximo espetáculo.
Hoje não há visitantes, nem turistas, mas, se houvesse, a “ementa” seria a mesma. Com o estabelecimento aberto, nos ensaios ou ao fim de semana, o cante é o “prato principal”, servido com petiscos e vinho.
A taberna estava desativada e foi comprada pelo grupo coral meses antes de o cante alentejano ser reconhecido como Património Cultural Imaterial da Humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), a 27 de novembro de 2014.
Na rua principal da vila, na estrada que liga a Serpa e a Moura, o espaço sempre foi “uma taberna de passagem, com uma tradição de cante muito grande”, mas esteve fechado “muitos anos”, conta à agência Lusa o diretor da formação “Os Camponeses”, António Lebre, de 41 anos.
“O pessoal chegava à tarde do trabalho e cantava aqui”, recorda, enquanto “desata” as memórias numa pausa no ensaio, aproveitada pelos outros membros do grupo para, aos poucos, se juntarem à volta do balcão e recomeçarem a cantar.
Quando o “selo” da UNESCO chegou, há dois anos, o grupo já tinha “resgatado” a tradição de cantorias da taberna, ao reabri-la como a sua sede e local de ensaios. Mas não só.
O espaço acolheu a criação do grupo jovem “Os Mainantes” de Pias e recebe quem gosta de cantar e de ouvir cantar à alentejana, sejam da terra, sejam turistas.
“É um espaço que está aberto” e “onde se canta”, quer os do grupo, quer todos os que se queiram juntar, acabando por gerar-se “um cante espontâneo, um cante de taberna como existiu há muitos anos”, relata.
O espaço fez com que as pessoas “chegassem ao cante mais diretamente”, segundo António Lebre. E agradados ficam também os “muitos turistas” que já visitaram a taberna. Depois de ouvirem as “modas”, os portugueses “saem encantados” e os estrangeiros “ouvem com emoção”.
“Se calhar, já passaram por aqui trezentas e muitas pessoas. Servimos-lhes as refeições, servimos-lhes o cante” e, mesmo que não entendam a letra, “beberam aquele som e aquilo disse-lhes qualquer coisa, há qualquer coisa na melodia que lhes toca”, descreve.
Para Paulo Lima, coordenador da candidatura à UNESCO, este projeto, que faz parte da Rota do Cante de Serpa, que permite aos turistas contactarem os muitos grupos corais do concelho e assistirem aos seus ensaios, é “uma boa prática e deve servir de modelo, quando for possível”.
“Não é apenas a sua sede, como é uma escola, local de ensaio e um espaço aberto a quem quiser experienciar o cante”, diz.
O cante, prossegue o também responsável da Casa do Cante em Serpa, “tem que ser ouvido onde existe” e nos “lugares onde naturalmente está”. Se a taberna, “na nossa cabeça, é onde se canta”, este espaço em Pias é o “lugar de excelência” para o cante.
“E se essa excelência for acompanhada com a criação de sustentabilidade e de mais-valia para os grupos, uma parte de todo o processo de inscrição do cante alentejano na UNESCO está realizada”, acentua Paulo Lima.
Com as paredes da taberna decoradas com recordações do percurso do grupo coral, “Os Camponeses” não têm dúvidas. Este cante, à volta do balcão, “tem mais valor do que qualquer palco”.
“É um cante em que as pessoas estão mais descontraídas, em que até se canta tudo e mais alguma coisa, não seguindo qualquer tipo de guião. Nós estarmos em palco é quase uma formalidade”, afirma António Lebre.
O “renascer” do espaço contribui, pois, para “manter a tradição” e “o registo do cante” e atrair também os mais novos, conta o diretor do grupo: “Os jovens já vêm aqui, ouvem cante, muitos deles já cá estão [num dos grupos corais] e isso é bom”.
Hilário Serra, de 20 anos, faz parte desse “sangue novo”. Em “pequenino”, admite, “não gostava muito” do cante, mas agora integra “Os Camponeses” e “Os Mainantes” e sente-se como “peixe na água” no ambiente da taberna. Mesmo que, realça, não beba.
“Gosto disto, eu e mais uns quantos amigos meus”, porque “a verdadeira escola é aqui, a cantar à roda do balcão e a gente a ouvir”, afiança.
Essa oportunidade de convívio e de partilha entre velhos e novos é realçada por Paulo Lima. O cante, argumenta, “é um lugar onde as pessoas se encontram”.
Manuel Charraz, de 73 anos, passou por várias formações corais da terra, até chegar ao grupo “Os Camponeses”. O “amor” que diz sentir pelo cante nunca se alterou e foi igualmente com “muito amor” que recebeu o reconhecimento da UNESCO.
Com orgulho, diz que a taberna é agora “a casa do cante dentro de Pias” e quem quiser entrar é bem-vindo: “Fazemos orgulho em receber toda a gente”.
“Tem vindo gente do Brasil, do México, do Canadá, de todo o lado. Estamos aqui comendo e bebendo e cantamos, para a gente se divertir e divertir os que aqui andam”, relata. E promete, antes de regressar a casa, pelas ruas vazias da vila: “Só deixo de cantar quando morrer ou não puder de maneira nenhuma já vir aqui. Porque gosto disto, gosto disto ao máximo”.
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