O ano, que já nos parece longínquo, de 2010, foi o ano da nossa viagem pelo Médio Oriente. Nesse Verão, percorremos, sempre por terra, o Egipto, a Jordânia, a Síria, Palestina e Israel, durante quase dois meses. A Síria constituía uma parte essencial dessa viagem, pois tínhamos imensa curiosidade em conhecer um pouco dessa nação e da sua população. Sabíamos que a sua reputação, rotulada como fazendo parte do famoso “Eixo do Mal”, não fazia jus ao país e às suas gentes, e por isso queríamos explorar um pouco da Síria, mas, no entanto, também queríamos acabar a viagem em Israel, e por isso acabaríamos por não passar muito tempo na Síria, algo de que nos arrependeríamos pouco tempo depois.
A Síria, hoje
A Síria tem uma área de cerca de 185.000 quilómetros quadrados, ou seja, equivalente a cerca do dobro da área de Portugal. Tem uma posição absolutamente estratégica, no centro da região conturbada do Médio Oriente, fazendo fronteira com o Líbano, Israel, Jordânia, Iraque e Turquia. Desde a intervenção dos EUA no Iraque, a Síria receberia mais de um milhão e meio de refugiados iraquianos, e as condições sociais e económicas iam-se ressentindo de tudo aquilo que se passava nos seus vizinhos. A sua posição estratégica foi, acima de tudo, aquilo que sempre atraiu as atenções das grandes potências sobre o país, e acabaria por ser o factor predominante no seu caminho para o caos político, social e militar que hoje vive, estando actualmente a sua sobrevivência e integridade como um Estado posta em causa.
Em 2011, cerca de seis meses depois de ali termos estado, a “Primavera Árabe” chegou à Síria. Protestos de segmentos da população foram reprimidos violentamente pelo governo de Bashar al-Assad. As divisões religiosas e políticas aprofundaram-se, e o exército, fiel ao Partido Baath desde 1963 e regido pela família Assad desde 1970, pareceu também dar sinais de divisão. Rapidamente, fruto também de diversas influências externas, a Síria caiu numa sangrenta guerra civil, a qual ainda continua, quase seis anos depois. Hoje, a Síria é uma manta de retalhos, com parcelas do seu território controladas por diversos grupos armados, entre eles o auto-intitulado “Estado Islâmico”, sendo virtualmente impossível viajar no país, estando o acesso ao terreno reservado a organizações humanitárias, às facções beligerantes e à população que sofre.
A Síria, então
Mas no ano de 2010 não era assim, e poucos seriam aqueles que imaginariam o que estaria por vir. Entrámos na Síria pela fronteira jordana, tendo chegado facilmente a Damasco, capital e cidade com uma história riquíssima. Decidimos não visitar Aleppo, pois tínhamos pouco tempo, e pensávamos que teríamos uma nova oportunidade. Enganámo-nos, pois Aleppo nunca mais seria a mesma.
Desde a fundação do Islão, Damasco é um dos seus centros culturais, e então isso sentia-se. Visitámos o seu maravilhoso Souq, a alma da cidade e que deve a sua diversidade e quantidade de mercadores e comerciantes ao facto de ter sido uma das cidades da mítica Rota da Seda. Percorremos centenas de metros de ruelas estreitas e sinuosas, e becos sem saída, e embrenhámo-nos na cultura da sua população. As pessoas eram simpáticas e mostravam a necessidade em fazer os viajantes sentirem-se bem por ali. Ajudavam-nos na confusão das estações, davam-nos indicações, metiam conversa, queriam saber o que tínhamos visitado no país, para onde íamos a seguir. Pedíamos licença para tirar fotografias e as crianças posavam, os velhos riam e as mulheres sorriam com timidez.
As mulheres tinham uma condição social muito mais equilibrada do que noutros países que já tínhamos visitado, e o governo, apesar do culto pessoal do seu líder, não encorajava uma visão radical do Islão. Visitámos livremente as mesquitas, interditas a ocidentais noutros países supostamente “moderados”. Assistimos às cerimónias religiosas, mas também ao papel das mesquitas sírias no quotidiano da população, como lugar de encontro e convívio, e como local de peregrinação de muçulmanos de todo o mundo, um dos mais sagrados do Islão.
Fora de Damasco, não podíamos ter perdido a oportunidade de visitar as ruínas de Palmira. Localizadas no centro da Síria, na estrada a caminho do Iraque, encontram-se num oásis perto da cidade de Tadmur, e eram a maior atracção turística da Síria. Palmira era já habitada desde o segundo milénio antes de Cristo, tendo por ali passado vários impérios, sendo que constituiu sempre uma encruzilhada de rotas antigas (entre as quais, a Rota da Seda), sendo um ponto nevrálgico ligando o Mediterrâneo com a Arábia, a Mesopotâmia e o Extremo Oriente.
Palmira é sem dúvida um dos sítios arqueológicos mais fascinantes do Mundo, e o pensamento que nos ocorreu, quando lá chegámos as ruínas, à luz do sol poente, foi que se aquele lugar fosse na Europa, seria oficialmente uma das Maravilhas do Mundo. Visitámos as ruínas junto com a população local, que se deslocava no seu dia-a-dia, pois a estrada alcatroada passava bem no meio do complexo. O facto de se encontrar num local remoto ajudou à sua conservação ao longo dos séculos, mas também poderá causar a sua não preservação dos perigos modernos. Capturada, recuperada, e há quem diga, recapturada pelo “Estado Islâmico”, teme-se o pior pelo futuro desta maravilha do mundo antigo. Tal como a Síria, não se sabe o que sobreviverá, e em que condições.
A Síria e o futuro
Acabámos por deixar a Síria convencidos que voltaríamos, mais cedo ou mais tarde. Dando por garantido aquilo que não tínhamos visto, as pessoas que não tínhamos conhecido, as estradas que não tínhamos percorrido. Mas estávamos enganados. A ganância pelo poder tem levado à destruição daquele país, ao sofrimento e morte da sua população, à fuga generalizada de refugiados para a Europa. Mas, tal como os seus habitantes que fogem da sua pátria, nós temos uma esperança que não morre. Esperamos que, um dia, a Síria volte a ser o que era, que um dia possamos voltar, e que possamos viver novamente um país que nos deixou algumas das melhores recordações que temos do mundo islâmico.
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