O Natal é habitualmente associado ao estar em casa, passar o dia de pijama, enrolado na manta do sofá velho da avó, sempre com a mesa cheia, a mesma mesa: com as vozes que sabemos de cor a espalharem-se pelo ar todo, por todas as coisas, a entrarem pelos móveis de onde saíram os pratos e as travessas, pelas suas portas entreabertas; a entrarem pelas gavetas que alguém se esqueceu de fechar, na pressa de levar mais talheres. Os talheres que batem nos pratos, ao ritmo do bacalhau e das couves a entrarem pela boca; os testos que batem nas panelas, para encherem mais um prato, para encherem mais uma boca. E é sempre o bacalhau, com as pencas ou os grelos e as batatas – faz-se com fartura, para o farrapo velho no dia a seguir.

Meia-noite: abrem-se os presentes, até lá enchem-se as horas com: dominó, jogos de cartas, monopólio e bingo; enchem-se as barrigas com: rabanadas, aletria, leite creme, pão-de-ló com queijo, bolo rei e frutos secos.

Na manhã seguinte saem torradas de bolo rei para o pequeno almoço e entre bocejos prepara-se o almoço, o peru ou o cabrito (dependendo da região e dos gostos) já está a assar há horas, habitualmente pelas mãos da matriarca, e o polvo demora-se no seu processo de suavização.

Mas aqui estamos a 10.000 Km da nossa terra natal. Será o nosso primeiro Natal na estrada, bem a norte da Tailândia, em Chiang Mai.

Um Natal a 10.000 Km de casa
Um Natal a 10.000 Km de casa créditos: Menina Mundo

Não demolhámos o bacalhau, não chegámos a escolhê-lo - pela grossura ou cor -, não chegámos sequer a vê-lo. Aqui não há bacalhau. Aqui mal há Natal. Ainda assim, haverá Natal, para nós.
Não nos sentaremos à nossa mesa, à mesa de casa da avó, que tantos Natais acolheu, mas ainda assim teremos uma mesa de Natal. Ainda assim será Natal.

E foi. Trocámos o bacalhau e as batatas por um trio de caril: vermelho, verde, panang. Trocámos o alho e azeite pelo forte açafrão. Trocámos o frio, as golas altas e as mantas por uns 30 graus. Decorámos um pinheiro, de frente para as montanhas. Ceamos entre mangas caveadas, ao ar livre, depois de um dia inteiro de passeio, com muitos sawadee kaas, e visitas a grutas interrompidas por macacos que invadem estradas e restaurantes.

Um Natal a 10.000 Km de casa
Um Natal a 10.000 Km de casa créditos: Menina Mundo

Fomos nove à mesa. Nove no almoço, nove ao jantar. Uma mesa cheia. Nove pessoas, cinco nacionalidades (3 portugueses, 1 tailandesa, 1 americana, 2 australianos e 1 indiano), para alguns fora o primeiro Natal, para nós foi o primeiro fora de casa, longe dos nossos. Trocámos tradições e histórias de Natais antigos. No final lançamos uma lanterna – Khom Loi – aos céus, pela mãos de uma menina pequenina que, se a vida lhe for meiga, irá fazê-lo durante muitos anos, até as mãos deixarem de ser pequenas e passarem a ser grandes e fortes e depois encolherem e enrugarem . Ficamos a vê-la ir, céu acima, e com ela esvaziamos-nos dos males – confiando na crença do Loy Krathong e do Yi Peng – e enchemos-nos de desejos para o devir.

Um Natal a 10.000 Km de casa
Um Natal a 10.000 Km de casa créditos: Menina Mundo

E foi na manhã do dia seguinte que as crianças abriram as prendas, com o sol aberto a acompanhar-lhes os sorrisos. A Mia foi pintada de rosa nas bochechas e penteada pelas mãos da sua ‘irmã mais velha’ e brincou às escavadoras com o seu ‘irmão mais novo’.

Foi Natal. O Natal é casa e nós tínhamos deixado a nossa há quase 100 dias, por isso, saberemos sempre situar este Natal, no calendário e no mapa. Um Natal na estrada, quando o Natal é casa. Um Natal sem bacalhau, sem frio. Um Natal sem a mesa do costume, sem os do costume. O Natal em que mudamos de mesa, de ceia, de rostos, de língua e, ainda assim, permanecemos nós, somos ainda mais nós, conhecemos-nos sempre um pouquinho mais e melhor quando saímos desse conforto da repetição.

Um Natal a 10.000 Km de casa
Um Natal a 10.000 Km de casa créditos: Menina Mundo

E sabem?! Foi um Natal maravilhoso, porque o Natal não é o bacalhau que o faz, não são as prendas, não são as casas por dentro nem a temperatura do lado de fora, não são as coisas que acumulamos na cave para o ano seguinte, nem as que compramos novas, não é a árvore, grande ou pequena, nem as bolas ou as fitas e as luzes. Não é a correria para as últimas compras. Nada disso, por si, diz o Natal.

O Natal deve medir-se por dentro e tudo o que é o Natal estava ali, connosco: nós, o núcleo central da família que construímos, a fazer o que mais nos preenche – e no coração trazíamos a sorte de saber bem os que amamos, de os saber no calor das suas casas.

E que sorte a nossa.

Feliz Natal.

Este artigo foi originalmente publicado em Menina Mundo.