Ainda o ferry se aproxima do cais de Constança (Konstanz), a cidade que empresta o nome ao maior lago alemão, e já os condutores locais buzinam para avisar os turistas que o tempo de apreciar a vista acabou. Não querem carros a bloquear a fila quando a plataforma descer e o portão se abrir. Afinal, estamos na Europa Central, no ponto em que os confins germânicos se encontram com as montanhas suíças, e aqui nem os relógios param nem a ordem se dissipa. As pessoas desembarcam calmamente: têm à sua frente uma das cidades mais ricas do país, sede do Concílio histórico que no século XV acabou com o cisma papal, e nas suas costas o lago com dimensões de mar que beija a face norte dos Alpes e as areias de três nações – Alemanha, Áustria e Suíça.

O Bodensee (nome original do lago, que significa mar-chão) formou-se a partir da geleira do rio Reno na última era glaciar, há cerca de 15 mil anos. Estende-se por uma área de 571 quilómetros quadrados e contorná-lo por terra implica percorrer mais de 300 quilómetros. Apenas os lagos Balaton, na Hungria, e Genebra, na Suíça, o ultrapassam em dimensão no coração da Europa. Divide-se em quatro secções, sendo o Obersee (Lago Superior) a maior delas e a principal via para as embarcações que navegam com a sombra alpina no horizonte.

lago constança
créditos: Tiago Carrasco

Os peixes que habitam as suas águas, profundas até 251 metros, bem como a fertilidade das suas margens foram um chamariz para o Homem que em seu redor fundou alguns dos mais antigos aldeamentos europeus. A sua importância perdurou até aos nossos tempos: Constança é sinónimo de bons vinhos e legumes, sede de empresas de tecnologia de ponta e um dos mais concorridos destinos balneares no interior do Velho Continente.. No verão, é invadido por praticantes de desportos náuticos e banhistas de sandálias (que já quase deixaram de usar meias brancas). Nos meses frios, Constança despe-se de gente e apresenta uma nudez selvagem, serena e autêntica.

«Se Konstanz fosse uma pessoa era uma velha rica e sábia, mas ainda com vontade de se divertir», diz o escocês Mark Stewart, de 22 anos, que procura na Livraria Inglesa manuais para o seu curso de literatura alemã na universidade local. «É uma cidade antiga, mas cheia de vida universitária, carregada de história e de tradição católica, sem nunca ter deixado de dar espaço ao pecado nas suas vielas». Para entender o britânico, basta ir ao magnífico porto de Konstanz. Ali, um grande armazém construído em 1388 como entreposto para o comércio com Itália, tornou-se, poucos anos depois, no edifício mais importante da cidade ao funcionar como quartel-general do conclave de cardeais que, em 1417, elegeu Martinho V Papa.

lago constança
créditos: Tiago Carrasco

Konzilsgebäude é o símbolo máximo do Concílio de Constança, um dos eventos maiores da Idade Média, que ao longo de cinco anos (1414 – 1418) promoveu acções diplomáticas para acabar com o Grande Cisma do Ocidente, um período histórico em que três Papas diferentes reclamavam ser herdeiros do trono de  São Pedro. Nesse período, à capital do Bodensee chegaram reis e bispos, cardeais e escritores, comitivas inteiras de metrópoles tão longínquas como Lisboa e Damasco. Konstanz foi o centro do mundo e a salvação da Igreja Católica. Seiscentos anos depois, o Konzilgebäude está de portas abertas para exibir colecções sobre o seu glorioso passado.

O número de visitantes de Constança durante o Concílio foi similar ao da sua população actual: 80 mil pessoas. À época, os forasteiros eram mais do que os nativos. Tamanho influxo de homens foi um chamariz para as prostitutas, que serviam as altas figuras do clero e da nobreza europeia nas horas livres. Voraz crítica a esse episódio, uma estátua de uma voluptuosa meretriz ergue-se num pedestal giratório no cais da cidade: exibe em cada uma das suas mãos as figuras nuas do Papa Martinho V e do Imperador Sigismundo. Imperia, construída em 1993 pelo arquitecto alemão Peter Lenk, provocou a ira da igreja, mas tornou-se num dos símbolos de Constança e da decadência moral do poder. Os turistas aglomeram-se no pontão para observar, entre bandos de gaivotas frenéticas, a colossal figura de nove metros que foi inspirada numa personagem de um romance de Honoré de Balzac.

lago constança
créditos: Tiago Carrasco

Os alemães estão mais interessados nas iguarias do mercado instalado junto à doca, com barraquinhas com salsichas para todos os gostos e doces regionais, envoltas pelo fumo aromático expelido pelos chaminés. Uma das sensações é o spätzel – uma pasta suave do sul da Alemanha, feita de ovo e coberta por queijo emmental derretido -, acompanhado, claro, por uma boa cerveja bávara.

Exagerar na cerveja não é recomendável para passear na calçada medieval de Niedeburg, o centro histórico de Constança, onde ainda é possível encontrar ruelas estreitas e casas com mais de 700 anos, com as típicas molduras de madeira na fachada. Uma espreitadela numa galeria, outra num antiquário, e surge o Münster, o Mosteiro de Constança, um dos edifícios mais antigos e impressionantes do perímetro do lago. Construído no século XI e ampliado nos séculos XV e XVII, foi no decorrer de várias centenas de anos a casa da maior diocese alemã, e conta com um majestoso coro de 1460 e uma vista privilegiada sobre o casco velho.

lago constança
créditos: Tiago Carrasco

Quem passeia à deriva por Constança, arrisca-se a mudar de país sem se aperceber. A meio de uma rua vulgar, há um discreto sinal de despedida da União Europeia. Meia dúzia de passos, dois guardas inertes junto a uma caserna fronteiriça e está-se na Suíça – a moeda passa a ser o franco e uma sopa a custar 10 euros. O maior fluxo de pessoas passa no sentido da Alemanha, precisamente para fazer compras mais baratas. E porque Kreuzlingen, a irmã helvética de Constança, não tem muito que ver para além dos apetitosos chocolates expostos nas lojas da rua principal. São como duas gémeas siamesas com sortes distintas: a beleza, a sabedoria e o carisma ficaram todas do lado germânico.

Na Suíça, há paragens obrigatórias. Primeiro, na pequena aldeia de Gaienhofen, fica a casa do escritor Hermann Hesse, prémio Nobel da Literatura em 1946. Foi aqui que o autor de Siddhartha viveu permanentemente com a mulher, Maria Bernoulli, de 1907 a 1912, um período muito importante no seu percurso, uma vez que teve os seus três filhos, escreveu o seu segundo romance Debaixo das Rodas, interessou-se pelo budismo e encetou a viagem pelo Oriente que viria a ser determinante na sua bibliografia.

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créditos: Tiago Carrasco

Hesse foi um guru do movimento hippie na Alemanha e, por isso, Gaienhofen é destino de romarias de casais alternativos de meia-idade. Encontram uma casa pitoresca sentada num promontório, rodeada por jardins, mas cuja visita é apenas possível com marcação antecipada. À entrada, pode ler-se: “Aqui viveu Hermann Hesse, Mas agora vive outra família. Respeite a privacidade”. Após 90 anos de abandono, foi o casal Eberwein que pôs mãos à obra para restaurar os jardins e preservar os elementos do lar que ainda remontavam à passagem do escritor. A todos aqueles que não conseguem visitar a casa, resta-lhes compensar a angústia com uma visita ao Museu Hesse, junto à estrada que atravessa a aldeia, onde podem ficar a saber mais sobre o autor germânico mais lido do século passado.

Pouco depois, o Lago Constança afunila no leito normal do Reno. O fenómeno acontece em Stein am Rhein, uma preciosa vila suíça que, ao contrário de Kreuzlingen, merece as honras de apresentar aos visitantes as virtudes do país. As casas parecem saídas de um conto de fadas, com os seus telhados bicudos e as portadas das janelas pintadas como asas de mariposas. Na Rathausplatz, pinturas alusivas aos escritos sagrados e à vida medieval adornam as fachadas dos edifícios e, junto ao rio, cafés e restaurantes são bancadas para contemplar a poderosa corrente do Reno.

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créditos: Tiago Carrasco

O curso de água segue ininterrupto até Schaffhausen, onde um acentuado declive proporciona ao Reno as maiores cataratas da Europa. Não é Vitória nem Niagara, mas o trambolhão das águas do rio europeu – com 23 metros de altura e 150 de extensão –  chega para bendizer a natureza e arregalar a vista. A agitação transforma a água numa espuma leitosa que se precipita com estrondo das rochas, soltando no ar pequenos salpicos que se misturam com o orvalho que cai dos céus. Uma valente molha. É possível fazer passeios de barco junto à queda de água.

Não faltam actividades no perímetro do lago. Em Affenberg (Monte dos Macacos), os símios comem  das mãos dos turistas, enquanto os veados se tentam esconder no mato. Há o museu arqueológico Pfahlbaumuseum Unteruhldingen, uma reconstituição de uma aldeia palafítica da Idade do Bronze. Classificada com o selo de Património Mundial pela UNESCO, apresenta casas de madeira que foram reconstruídas por arqueólogos em 1922, depois de descobertas provas da existência de povoações pré-históricas nas margens do Constança desde 4000 A.C.

lago constança
créditos: Tiago Carrasco

Não admira que o Homem se tenha instalado nesta zona desde os seus primórdios, já que o lago e as terras férteis lhe proporcionavam sustento. Actualmente, a grande fonte de rendimento vem do turismo, e nessa área nenhum outro local bate Mainau, a ilha das flores, que recebe 1,2 milhões de visitantes por ano.

A ilha, hoje acessível através de uma ponte, foi propriedade da Ordem dos Cavaleiros Teutónicos até 1806, passando em 1853 para as mãos do Príncipe de Baden, que a transformou em retiro de férias. Quando morreu, sem filhos, este magnífico pedaço de terra insular ficou para a sua irmã Victoria, que era casada com o rei sueco Gustavo V. Isso explica como, em 1930, o príncipe escadinavo Lennart Bernadotte decidiu tornar Mainau numa reserva ambiental com potencial turístico. «A ilha ainda é, através de uma fundação, propriedade da família real sueca», explica Franz Petzold, director de marketing de Mainau. «Todos os anos, o comité do Prémio Nobel vem passar aqui um dia no processo de escolha dos vencedores».

Regressar na primavera a Mainau depois de a ter visto em dezembro é como admirar uma aguarela terminada depois de ver a tela em branco – flores salpicam os jardins com mil cores debaixo de árvores agora frondosas. «Temos mais de um milhão de tulipas, 1200 variedades de rosas, 20 mil dálias e dezenas de categorias de orquídeas», enaltece Petzold. Para além das maravilhas botânicas, a ilha conta ainda com espécies raras de árvores e uma estufa tropical onde esquadrões de borboletas irrequietas aterram na cabeça e nos ombros dos visitantes. As crianças podem divertir-se com os póneis e as cabras na pequena quinta e os adultos apreciar o requinte do palácio.

Agora que já sabe um pouco mais sobre as maravilhas desta região, reserve o seu voo na TAP e aproveite também para conhecer Munique.

Texto: Tiago Carrasco