Por Emília Matoso Sousa
Esperava-se muito calor, pelo que a decisão foi de partir às 6h (5 em Portugal), ainda que esta fosse a etapa mais curta. Foi também, em minha opinião, a menos bonita, pela quantidade de quilómetros percorridos sobre asfalto. Ainda assim, houve percursos muito agradáveis.
A N550 espera-nos à saída de O Porriño e serve-nos de piso durante um par de quilómetros. Até Mos, nada a assinalar. Aí, chegamos ao núcleo de A Rúa, onde se encontra o Pazo de Los Marqueses, um típico paço galego do séc XVII, residência dos marqueses de Mos até ser incendiado pelos franceses no início do séc. XIX. Foi reabilitado e, atualmente, pertence à comunidade, sendo utilizado como espaço multiusos. A imponente igreja de Santa Eulália merecia uma visita, mas estava encerrada. O cruzeiro Os Cabaleiros, datado do século XVII, é aqui outro ponto de interesse. Os cruzeiros são muito frequentes na Galiza, desde exemplares sobreviventes de outras eras, até aos construídos ainda na atualidade.
Somos agora confrontados com a primeira subida do dia. Não é longa, é em piso de asfalto, mas é suficientemente íngreme para testar a nossa resistência e para dar bom uso e valor aos bastões. Segue-se uma incursão num cenário de árvores e terra batida e continuamos a subir… Vamo-nos cruzando com alguns ‘conhecidos’. Bon Camino! Esta é a versão moderna dos Ultreia! e Suseia!, troca ancestral de saudações entre peregrinos, com o objetivo de dar ânimo. Vamos lá! Força!, sendo as respostas: Vamos! Coragem! E bem precisamos disso para ultrapassar os obstáculos do Caminho, principalmente as subidas. E também as descidas, mas já lá vamos!
No ponto mais alto da subida, chegamos à Capela de Santiaguiño. É também por aqui que encontramos um marco miliário romano da nossa já conhecida Via XIX. Estes marcos informavam sobre as distâncias em milhas romanas. Cada milha correspondia a 1000 passos (1480 metros), o que explica o termo ‘miliário’. Eram construídos em pedra, de forma geralmente cilíndrica, ostentando, geralmente na base, inscrições sobre o número de milhas da respetiva via, a distância até ao destino, e o nome do imperador em funções, a quem eram dedicados.
O Caminho é também uma oportunidade para veicular mensagens positivas. É o caso de uma escultura que alerta para o flagelo da violência sobre as mulheres, inaugurada em 2007 sob o lema ‘Caminhando pela Igualdade’, e que tem incorporadas pedras com os nomes das mulheres assassinadas neste mesmo ano. Os seus autores, o escultor Marcos Escudero em colaboração com Auri Diaz Vásquez, passam a mensagem de que, apesar de haver ainda muito caminho a percorrer no sentido da igualdade entre homens e mulheres, “pasiño a pasiño e sobre todo camiñando xunt@s, conseguirémolo. Bo Camiño!”.
E o que é que se segue a uma grande subida? Uma grande descida! Neste caso, uma terrível descida! Os sacrificados foram, agora, os joelhos e qualquer distração podia originar uma escorregadela. Mais uma vez, valeram-nos os bastões. Mas no Caminho está tudo pensado e, no final, esperavam-nos umas ‘aprazíveis’ áreas de descanso para apaziguar as reclamações dos músculos das pernas e recuperar o fôlego. Por ‘aprazíveis’ entendam-se áreas de sombra com uns ‘confortáveis’ bancos de pedra…
Aproximamo-nos já de Redondela. Passamos pelo Convento de Villaverde, parcialmente em obras, e eis que surge à nossa frente, bem no alto, aquela que é uma imagem de marca da cidade: o viaduto Pedro Florani, ponte ferroviária também conhecida como Ponte de Madrid, construída em 1876, e que esteve em atividade durante mais de um século. Há ainda outra ponte ferroviária a sobrevoar a cidade, o Viaduto de Pontevedra, este ainda a funcionar, o que vale a Redondela o merecido epíteto de ‘vila dos viadutos’. A existência de comboios a sobrevoar os edifícios levou Federico Garcia Lorca a referir-se-lhe como “caída dos céus”.
Check-in feito e duche tomado, foi tempo de ir dar resposta ao apetite e fazer um passeio de reconhecimento. Malgrado a inclemente descida, continuávamos sem mazelas e aptos para mais uma corrida.
Redondela confina com a ria de Vigo, a qual permite vislumbrar as ilhas de Santo Anton e de Santo Simion. “Sedia-m’eu na Ermida de San Simion, e cercarom-mi as ondas, que grandes son!”. Sim, foi esta a ilha que inspirou o trovador Meendinho, no séc. XIII, a escrever esta Cantiga de Amigo. Quem (não) se lembra de ter estudado esta relíquia da poesia lírica galaico-portuguesa?
O dinamismo e a alegria das cidades espanholas é visível por aqui (antes e depois da siesta, naturalmente). Muitas pessoas nas ruas, sobretudo locais, e esplanadas cheias de gente que, entre tapas, bocadilhos e copas, vai fazendo tempo para o jantar…
A pequena cidade revela-nos alguns pormenores interessantes. A certa altura (esta é só para alguns), deparamo-nos com a casa onde viveu e morreu D. José Regojo. Esse mesmo, o das camisas, que terá sido “promotor de empresas e home de ben”. Isto de acordo com uma placa ali colocada pelos seus trabalhadores em 1993. Já a sua mulher, Rita Otero Fernández, “quen fixo da caridade o seu lema de vida”, foi eleita pelo Concelho de Redondela Personagem do Ano em 2014. Quem pratica o bem, merece ser reconhecido, essa é que é essa! Outra curiosidade, esta fixada num banco de jardim: o pintor Salvador Dali deu o seu nome a uma camisa feita na fábrica Regojo.
No dia em que deixámos Redondela, começava a Festa da Coca, evento que celebra o Corpus Christi. Durante os dias do evento, as ruas estão cobertas por coloridos e elaborados tapetes feitos de flores. Ponto alto da festa, e a origem do seu sugestivo nome, é o desfile da coca (um animal tipo dragão), acompanhada de gigantes e cabeçudos. Tivemos oportunidade de ver grupos de locais a prepararem as flores e a desenharem os esquemas dos tapetes nas estradas. Desta vez não pudemos ficar para a festa. Quem sabe se não voltaremos?
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A Emília Matoso Sousa é a autora do blog Caminhos Mil, onde escreve sobre as suas caminhadas pelo país. "Apenas pretendo guardar algumas das histórias e memórias que trago desses percursos e partilhá-las com quem, como eu, aprecia as coisas simples da vida..", conta.
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