Responsável por 27% do PIB, a indústria da hotelaria e turismo é uma das maiores oportunidades de emprego para os habitantes de Zanzibar. Mas para as mulheres o acesso a estes empregos não é simples. Normalmente, é necessária a aprovação do marido, irmãos ou outros membros da comunidade para que possam trabalhar numa indústria na qual ainda existem muitos preconceitos – como a ideia de que estar perto de ocidentais possa levar a adoção de comportamentos como o consumo de álcool e drogas ou até mesmo à prostituição.
“Muitos pais pensam isto, não têm conhecimento de como os hotéis e a indústria funcionam e pensam que se a filha vai trabalhar para o hotel vai passar a adotar os mesmos comportamentos de quem vem de fora”, conta Khadiya Nyange, 34 anos, uma das alunas do Centro de Formação Kawa e também do Clube de Promoção das Mulheres no Turismo.
No caso desta estudante e líder deste clube, os pais, os quatro irmãos e três irmãs estão orgulhosos do seu trabalho. E a porta está sempre aberta a todos os familiares ou curiosos. É importante mostrar que o trabalho de guia turístico é digno e essencial também para promover e divulgar a história e cultura do país. Aqui, e nos futuros locais de trabalho, usam-se as abayas – uns vestidos largos que cobrem o corpo da cabeça aos pés e que são tradicionais em países maioritariamente muçulmanos, como é o caso da Tanzânia. Além das abayas, a maior parte das mulheres em Zanzibar também usa o véu a cobrir a cabeça.
“Ensinamos as estudantes a protegerem-se e a manterem a sua cultura e a sua forma de vestir”, conta Suzanne Degeling, fundadora do centro e guia turística. A história de Suzanne é ela própria uma inspiração e não admira que algumas estudantes a apontem como um modelo a seguir, junto de nomes como a presidente de Zanzibar Samia Suluhu e outras governantes – Samia é a primeira mulher com este cargo no país; era vice-presidente e subiu à liderança em 2021 depois da morte do presidente John Magufuli.
Mas voltemos a Suzanne. A neerlandesa vive há 22 anos em Zanzibar. A sua paixão pelas viagens levaram-na a sair dos Países Baixos com 19 anos para conhecer o mundo. Estudou turismo e trabalhou como líder em vários países africanos. “Eu acho que me apaixonei por Zanzibar antes de ter vindo”, afirma ao SAPO Viagens.
Foram as fotografias que a levaram até ao arquipélago e mal chegou ficou “imediatamente encantada”. Depois, trabalhava como guia em África e ia recorrentemente a casa, nos Países Baixos. Tinha já “cinco malas, uma bicicleta e um gato” e resolveu “arranjar uma casa à volta destas coisas”, conta com piada. Passaram mais de duas décadas e mantém até hoje a mesma casa e o encanto por Zanzibar – apesar de também realçar todas as coisas que a afligem e as que foi vendo mudar ao longo deste tempo.
Em relação ao turismo, muito mudou. “Havia um ou outro pequeno hotel perto das aldeias e agora há grandes hotéis dentro de muros”. Fala ainda do aumento de população e de lixo e da desflorestação para a construção. Mas, por outro lado, também há coisas que mudaram para melhor, e uma delas é a maior aceitação das mulheres na hotelaria e turismo. “Há dez anos não se via uma mulher a trabalhar como guia turística”, garante Suzanne.
Hoje, a maior parte dos 57 estudantes do Centro Kawa querem ser guias turísticos. “Nós tentamos que possam seguir outras áreas também, há muitos outros trabalhos em hotelaria e para ser guia são precisas muitas competências”, explica.
Para entrar no Centro Kawa há poucos requisitos: ser de Zanzibar e sobretudo de famílias pobres. E mais, metade dos estudantes têm de ser mulheres. Tudo isto para atenuar o que são hoje as tendências de trabalho nesta área. Suzanne conta que “cerca de 70% do trabalho em hotelaria é dado a pessoas do continente e os locais fazem o trabalho com menos competências e mais barato”.
Hoje, após 12 anos da abertura desta escola já há guias mulheres a trabalhar e a demonstrar o seu valor. “E são muito boas guias, têm de ser muito fortes porque ouvem constantemente comentários na rua de homens e até mesmo de outros guias turísticos”, denuncia a diretora da escola.
Além da componente pedagógica, que tem a duração de 15 meses, os jovens – a maior parte entre os 17 e os 25 anos – aprendem várias outras competências que os ajudam a serem melhores profissionais e pessoas. Ao mesmo tempo, a escola desenvolve protocolos e relações com diferentes entidades envolvidas na área turística.
Duas semanas antes de o curso começar há várias atividades: inglês, empreendedorismo e bem-estar. Os alunos são motivados a aprenderem a nadar, a inscreverem-se em provas de corrida ou de bicicletas, por exemplo.
Protocolos de assédio sexual e pensos menstruais: os pequenos e os grandes passos para promover o trabalho das mulheres no turismo
Há um compromisso entre o centro e as famílias de proteger os jovens, principalmente as meninas. Mas há também uma garantia dada pelas jovens e famílias que durante os primeiros seis meses não se casam nem serão mães no primeiro ano e meio para conseguirem arrancar com uma carreira.
Depois de convencer as famílias que esta é uma área com potencial de trabalho e digna, o Centro Kawa esforça-se também para tornar o ambiente de trabalho seguro e confortável. Para isso, trabalha junto de hotéis para que estes criem ou ponham em prática protocolos de assédio sexual. “É importante que as raparigas saibam que não estão sozinhas e que saibam como pedir ajuda. Não enviamos estagiárias para nenhum hotel que não tenha protocolo, mas podemos trabalhar junto dos hotéis para que criem um. Aliás, queremos também envolver outras entidades e mesmo o ministério do Turismo”, afirma a neerlandesa. Além das questões do assédio sexual, há também a garantia que os hotéis permitam que as raparigas usem as roupas locais e o véu.
Outra das áreas em que este centro atua, e que pode parecer muito simples aos olhos de qualquer ocidental, mas é um assunto sério na Tanzânia, tem que ver com o uso de pensos menstruais. Como não são acessíveis, durante os dias da menstruação muitas meninas e mulheres faltam à escola ou ao trabalho por usarem roupas velhas ou outros métodos pouco confortáveis e higiénicos de recolha menstrual. “Aqui damos pensos reutilizáveis produzidos artesanalmente em Zanzibar e um kit com informação”, conta a responsável.
O Clube de Promoção das Mulheres no Turismo, criado dentro do Centro, tem ainda encontros regulares com mulheres que trabalham em turismo e um grupo de apoio e promoção ao trabalho das mulheres nesta área.
Tudo isto é idealizado por Suzanne, que conhece de perto a realidade destas jovens e que acredita que a informação é poder e fomenta a confiança e o bem-estar. Com um ar mais lúdico, criou também o Kanga Fashion Show: uma passagem de modelos improvisada com kangas (um tecido local que se pode usar de várias formas e que expressa diferentes mensagens). A ideia é que as jovens desenvolvam a criatividade ao mesmo tempo que desfilam e desenvolvem a confiança, à-vontade com o público, um bocadinho de performance, etc. Tudo características basilares para um guia turístico.
Contra o plástico e a desflorestação: limpezas de praias diárias e plantação de mangueiras
Além do clube das mulheres, há outro clube com muito impacto na escola e fora dela: o Clube do Ambiente. Todos dias há limpeza da praia e os estudantes recolhem cerca de 500 a 700 garrafas de plástico por dia. Para se ter ideia da poluição por detrás dos cenários de mar azul-turquesa e areias brancas, esta recolha é feita por apenas um grupo de 15 a 16 pessoas em uma hora.
Desde 2015 que estas limpezas acontecem diariamente e desde 2018 que se fazem também mensalmente com outras organizações com o objetivo de fazer crescer o interesse pelos temas ambientais e o próprio impacto do turismo. No primeiro ano, em junho de 2018, chegaram a juntar seis mil pessoas a limpar Zanzibar.
Além das limpezas diárias das praias, há também debates e discussões para aprofundar esta temática e criar um movimento além da escola, que se possa repercutir na ilha. Aliás, numa das últimas iniciativas, em duas semanas, os estudantes plantaram cerca de 12 mil árvores de manga para ajudar a combater a reflorestação.
Das propinas às empresas sociais: o poder dos estudantes num turismo mais igualitário e ecológico
Este esforço do Centro Kawa já tem impacto nas pequenas empresas turísticas que os ex-alunos estão a criar.
Para estudarem nesta escola, os jovens pagam propinas – “temos bolsas de estudo e estamos sempre a pedir donativos, mas achamos importante que os estudantes contribuam com algo para os seus estudos, mesmo que seja pouco, e pode ser em forma de empréstimo”, conta a diretora. Ou seja, os estudantes podem ir pagando estas propinas quando começarem a trabalhar ou mesmo a fazer algum trabalho dentro da escola ou nas empresas que já têm sido criadas através da escola: como é o caso do Café Blue e da Bluebikes Zanzibar, ambos situados no centro de Stone Town e bem perto deste centro de formação.
O Café Blue Zanzibar serve pequenos-almoços e refeições de take-away ao mesmo tempo que oferece emprego a jovens e estagiários. Há um cuidado especial em servir refeições saudáveis, locais e orgânicas.
Contornamos uma das pequenas ruas do centro e encontramos a Bluebikes Zanzibar, outra empresa construída pelas mãos de ex-alunos do Kawa. Em 2017, Humoud, 34 anos e natural de Pemba, abriu esta loja de arranjo e aluguer de bicicletas. Ali trabalham mais dois ex-alunos: Isa, 25 anos, e Fatma, com 28.
Têm 25 bicicletas para arrendar, algumas estações para deixar as bicicletas e ainda passeios turísticos de um dia guiados pela ilha. O investimento inicial foi feito pela TUI Care Foundation, através do programa TUI Academy Zanzibar – um dos maiores mecenas da escola, que patrocinou a compra de dez bicicletas, que também podem ser usadas pelos estudantes do centro.
Todos se mostram muito orgulhosos do seu trabalho, com o facto de promoverem um meio não poluente e numa forma saudável de visitar a cidade. Isa já trabalha com Humoud há seis anos e conta que foi um dos jovens que entrou no programa para pagar as propinas depois de começar a trabalhar. Demorou três meses.
Fatima, uma pioneira a romper alguns preconceitos de género, diz que tem o apoio da mãe para trabalhar, principalmente porque se não fosse na Bluebikes dificilmente teria outro trabalho.
Nesta escola nada foi deixado ao acaso. Kawa foi o nome escolhido pelos estudantes para o projeto; em suaíli é o nome de um objeto feito de cestaria que é usado em muitos países africanos para cobrir a comida, com o objetivo de representar algo tradicional e que abrange e protege muitas coisas. E é assim, em diferentes áreas, numa dança entre o elogio da cultura local e a quebra de tabus sociais, que esta escola pretende continuar a crescer.
O SAPO Viagens foi até Zanzibar a convite da TUI Care Foundation.
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