Saímos de Narsaq, no sul da Gronelândia, há cinco dias. Até chegar a Nuuk, a capital, o tempo esteve bom, com sol e o mar sempre tranquilo. Até aí, a ideia do cruzeiro pelos fiordes gelados e cheios de icebergs correspondia ao nosso imaginário. O Saffaq Ittuk era a imagem perfeita de um sonho.
Porém, o Saffaq Ittuk não é um barco de cruzeiro. O Saffaq Ittuk é um navio de transporte de passageiros que opera uma vez por semana e que liga as principais cidades do sul e do centro da Gronelândia, mas que nos meses de Verão, se estende um pouco mais para norte. Quem entra e sai do barco são gronelandeses que, ao contrário de nós, não vão passar aí 5 dias, mas apenas um ou no máximo dois. Sempre que chegamos a uma cidade vemos o barco esvaziar-se de gente e as pessoas que ocupam os beliches ao nosso lado vão-se embora e são substituídas por novas caras. As conversas que tenho com a população local são fugazes e resumem-se a “de onde vem e para onde vai”. Nada mais, já que o seu inglês é muito limitado.
O barco atraca nos portos das principais cidades gronelandesas, localizadas na parte ocidental da ilha devido a uma corrente quente, impedindo que o manto de gelo se estenda até ao mar. Quando o Saffaq Ittuk chega ao porto de Nuuk, Sisimiut ou Paamiut o barco enche-se e esvazia-se de gente, mas é nas pequenas povoações isoladas nos fiordes que a chegada do barco é mais aguardada.
Quando embarcamos em Narsaq, alguns minutos antes do barco chegar o porto estava deserto. Sentados no chão, ao lado das mochilas, aguardávamos o barco que nos levaria para lá do Círculo Polar Árctico, contemplando o pôr-do-sol avermelhado que se perdia no horizonte. Mas, de repente, as ruas que descem para o porto começam a encher-se de gente. Jovens, velhos, crianças, parece que toda a cidade veio ver chegar o barco. E veio mesmo! Cinco minutos depois o barco atraca no porto e, dos 1300 habitantes de Narsaq, parecia que metade estaria por ali. Recebiam o barco com entusiasmo. Alguns recebiam parentes e amigos. O barco ainda não tinha atracado e já se ouvia manifestações de alegria e se viam os acenos entusiasmados de quem já não se vê há muito tempo. Há também muitos teenagers que vieram ver os amigos que estão a viajar. Alguns vêm do norte e dirigem-se para Qaqortoq, a próxima paragem. Os jovens saem, abraçam-se, fumam um cigarro juntos e voltam a embarcar. Este é um comportamento recorrente nos portos mais pequenos já que os jovens que querem fazer o ensino secundário têm que abandonar a sua família muito cedo e deslocar-se para as duas ou três escolas espalhadas pela ilha. No Verão, voltam à sua povoação para visitar a família mas não resistem a um encontro fugaz com os amigos no porto. Uma realidade dura mas que testemunha o isolamento diário desta população.
Nos pequenos povoados, a chegada do Saffaq Ittuk é o evento mais aguardado da semana. O isolamento dos povoados mais pequenos é tal que o barco não consegue entrar no porto. Quando isto acontece, o Saffaq Ittuk lança ao mar um barco pequeno que faz o embarque e desembarque dos poucos passageiros que entram e saem ali. E, é aqui, também nestes lugares que a população mais anseia a chegada do barco semanal. Os jovens e as famílias pegam nas suas pequenas lanchas e vêm para junto do Saffaq Ittuk tentando conversar com alguns dos seus tripulantes e passageiros. Kangaamiut ou Arsuk são assim, o testemunho vivo de que o progresso e a globalização ainda não tirou do isolamento a população gronelandesa.
Mas o Saffaq Ittuk está longe de ser um barco de cruzeiro e na 5ª noite que passámos a bordo o inevitável acontece. O tempo muda e o estado do mar era então muito pior. Depois de passar Sisimiut as vagas eram gigantescas; o barco parecia contorcer-se com as ondas e o motor de 2000 cv parecia pertencer a um barco de papel. O nosso estômago ainda resistia às primeiras vagas. Sentados, vimos o café esvaziar-se de gente e uma das hospedeiras a espalhar sacos de papel pelo barco. As ondas eram tão grandes que o barco subia quando entrava na vaga e caía no vazio, segundos depois. Era uma sensação horrorosa. Ainda conseguimos chegar ao beliche e deitarmo-nos mas foi por pouco tempo. Um embate numa das vagas fez-nos saltar da cama e cair no chão. A noite foi passada embalando ao som do barulho das ondas e dos gemidos que saiam das casas de banho e dos outros compartimentos. Foi com alegria que na manhã seguinte, pelas 8 horas, pousámos os dois pés no chão da cidade de Aasiaat, na baía de Disko. Até o nevoeiro e a chuva que ameaçava cair não nos incomodaram.
Sim, a ideia idílica de um cruzeiro na Gronelândia desvaneceu-se completamente ao 4º dia, mas, depois, sentados no café, olhando os icebergs ondulando na baía de Disko percebemos que isto também é a Gronelândia. Este é um território inóspito, difícil de alcançar e isolado. Chegar aqui tem assim um sabor especial. Afinal, a Gronelândia continua a ser um destino de sonho.
Esta crónica de viagem foi escrita pelo Viajar entre Viagens durante uma viagem no Árctico.
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