Mas o pirarucu também é o objeto de um projeto piscícola local que visa a proteger este recurso valioso, ao mesmo tempo em que previne invasões de pescadores ilegais no território indígena do Vale do Javari.
Para os kanamari, um dos sete grupos étnicos registados neste vale fluvial, a história mítica do pirarucu é contada assim: "uma folha de árvore que caiu na água e se transformou num peixe gigante", relata o cacique Mauro da Silva Kanamari à AFP.
Durante muito tempo, o alimento anónimo dos indígenas que vivem nas áreas remotas da imensa floresta amazónica, o pirarucu agora é uma das estrelas dos cardápios de restaurantes gastronómicos e da "cozinha de fusão" do Rio de Janeiro, de Bogotá, ou de Lima.
Um sucesso que é também a sua desgraça: o preço de compra bate recordes nos mercados ilegais e câmaras frigoríficas clandestinas de Atalaia do Norte, Benjamin Constant, Tabatinga, no Amazonas, e na sua cidade vizinha Letícia, na Colômbia, principais localidades do triângulo da tríplice fronteira.
Resistente às piranhas
O "Arapaima gigas", nome científico do pirarucu, está entre os maiores peixes de água doce do planeta: onívoro, pode atingir facilmente até três metros de comprimento e pesar mais de 200 kg.
A sua barbatana dorsal vermelha e esguia em direção à cauda, bem como a cabeça achatada e os olhos globulares, dão uma aparência de fóssil pré-histórico.
Tudo no pirarucu é aproveitado, desde a carne e os filés, suculentos, quase sem espinhas e sem o gosto usual de lama dos peixes de água doce, mas também as tripas, a pele e as escamas (resistentes aos ataques das piranhas!), que são vendidas como porta-chaves para turistas.
A pesca é feita com redes e arpões, uma vez que o peixe vem à superfície para respirar pelo menos a cada 20 minutos. O pirarucu reproduz-se no início do ano, quando as águas estão mais altas, nos lagos e lagoas das curvas do Amazonas e dos seus afluentes.
Vítima da sobrepesca em toda a Amazônia brasileira, o pirarucu quase desapareceu nos anos 90, até que uma regulamentação rigorosa foi implementada em 2004 pelo Ibama.
No Amazonas, a pesca é estritamente regulamentada. É proibida na reserva do Javari, exceto para o consumo próprio dos indígenas.
"Bonito e bom"
Apoiado pela ONG brasileira CTI e gerido diretamente pelos indígenas kanamari, um projeto de piscicultura natural está atualmente em teste no rio Médio Javari, que se baseia numa gestão sustentável implementada com sucesso em outras partes do país.
"A ideia é que os indígenas se alimentem, atendam às suas necessidades, ao mesmo tempo em que protegem o território", explica Thiago Arruda, responsável local do CTI, à AFP.
Desde 2017, os kanamari têm limitado as capturas ao mínimo em sete dos seus 35 lagos.
A tarefa é árdua e perigosa, perante os pescadores ilegais. "São eles que nos roubam!", denuncia João Filho Kanamari, um dos coordenadores do projeto.
Organizados em grupos de vigilância, os kanamari apostam na consciencialização e no diálogo, perante os pescadores frequentemente agressivos e possivelmente violentos.
Este projeto "é muito importante para nós", destaca Bushe Matis, coordenador geral da Univaja, a União dos Povos Indígenas do Vale do Javari.
"Antes as pessoas pescavam de qualquer maneira. Agora, vamos cuidar dos lagos e áreas de pesca, para ter peixes sempre no futuro, contribuindo também para a luta contra as invasões", acredita.
Após cinco anos de gestação, o projeto termina no final do verão de 2023, com uma contagem final dos pirarucus e as primeiras capturas. O Ibama já deu a sua aprovação e autorizou a comercialização das futuras capturas.
Mas há muitos obstáculos. Logísticos, por exemplo, com a organização, pelos rústicos kanamari, de uma cadeia de refrigeração desde as profundezas da floresta. Ou ainda a delicada questão da divisão dos benefícios dentro da comunidade.
Esta gestão também tem despertado o crescente interesse de atores políticos e económicos locais "nem sempre bem-intencionados e provavelmente envolvidos em redes de pesca ilegal", alerta um promotor do projeto.
Enquanto isso, os kanamari louvam em canção este projeto "bonito e bom". "O manejo é o futuro dos nossos filhos!", sorri o cacique Mauro.
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