Um turbilhão de poeira envolve a cavalgada com centenas de animais. No centro, peões esforçam-se para não perder nenhum dos sete ou oito exemplares, ou para que nenhum dos cavalos interrompa o caminho dos outros numa demonstração de virtuosismo equestre.
É o evento-chave da Festa da Tradição que se celebra todos os anos em San Antonio de Areco.
Esta localidade, situada a apenas 120 quilómetros da moderna e cosmopolita Buenos Aires, parece que faz parte de outro país: um território de homens a cavalo de tradição gauchesca. Boina, alparcata, violão e facão na cintura.
A 6 de dezembro de cada ano, a Argentina comemora o Dia Nacional do Gaúcho.
A figura do Gaúcho também está presente no Uruguai e conta com variações no Paraguai, no sul do Brasil, Bolívia e Chile. Mas este ano, 2022, no qual completam 150 anos da publicação, em 1872, de "Martín Fierro", o poema épico do argentino José Hernández, os atos comemorativos multiplicaram-se com exposições, conferências e questionamentos sobre identidade.
"Aqui ponho-me a cantar
ao compasso da viola,
que o ser a quem desconsola
uma dor extraordinária,
como a ave solitária,
cantando é que se consola".
...)
"A minha glória é viver livre
como o pássaro no ar;
no chão não vou me aninhar,
onde há tanto que sofrer,
e ninguém me há de seguir
quando eu voltar a voar".
Não tão branco
O poema épico "Martín Fierro" combina estrofes de seis versos com de quatro para cantar a epopeia melancólica de um gaúcho da primeira metade do século 19, que goza de liberdade e de uma vida nómada, ao mesmo tempo que sofre de injustiça e discriminação por causa da sua origem mestiça.
Rebelde, arredio a autoridades, ladrão de gado e às vezes desordeiro, Martín Fierro é também corajoso, solidário e leal.
"O gaúcho tornou-se num ídolo popular, muito antes de intelectuais e do Estado o proporem como um símbolo nacional", diz à AFP o historiador Ezequiel Adamovsky, investigador no Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas.
O poema, traduzido hoje para 50 idiomas, foi publicado em folhetins baratos e foi, à sua época, "um sucesso de vendas". Em 1913, consagra-se como poema nacional.
Os setores mais nacionalistas "tentaram apresentar o gaúcho como um herdeiro direto dos conquistadores espanhóis, que não se tinha misturado com nenhum habitante local, o que é uma fantasia insustentável. Tentaram projetar no corpo do gaúcho a imagem de branco e europeu", afirma Adamovsky, autor de "El gaucho indómito".
Por sua vez, os anarquistas, pela rejeição da autoridade; os comunistas, em nome da luta de classes, e os peronistas, pelo apoio dos trabalhadores rurais, reivindicaram ao longo da história a alma do gaúcho, uma disputa que, de alguma maneira, persiste até hoje, descreveu o historiador.
A gaúcha e a gauchada
Com um toque de rebeldia feminista, Gabriela Cabezón Cámara publicou, em 2017, o romance "Las aventuras de la China Iron", no qual recria o personagem de Martín Fierro a partir do olhar da sua companheira, que, abandonada pelo gaúcho, deixa a estância e parte com uma amiga para descobrir o país e a liberdade.
Em San Antonio de Areco, também há releituras da imagem do gaúcho, mas, sobretudo, há preservação, com magníficos cavalos montados com destreza tanto por crianças como por idosos.
"O homem a cavalo continua a trabalhar e é impossível substitui-lo, porque, apesar de muitas vezes deslocar-se num veículo, existem lugares aos quais é impossível chegar de outra maneira", afirma à AFP Victoria Sforzini, diretora de Cultura e Património do município de San Antonio de Areco.
"Também há muitos usos e costumes que passam de geração em geração", como a forma de laçar um animal ou a prática de tocar o gado, assinala Sforzini.
Em 2022, é difícil determinar quem é o gaúcho: os peões que exibem a sua destreza nas estâncias para turistas ou os trabalhadores rurais de salários modestos. Ou talvez o pedreiro Julio Casaretto, filho, neto e sobrinho de gaúchos que, nos fins de semana, ensina a sua pequena filha a montar a cavalo "porque está no nosso sangue".
"O gaúcho sempre foi, desde muito cedo, uma personagem literária", assinala Adamovsky, para quem "continua a existir esta visão de uma figura cavalheiresca, valente, fiel aos amigos. Inclusive, usa-se a expressão 'fazer uma gauchada' para dizer 'fazer um favor'", conclui.
Comentários