Bilhete-postal enviado por Rui Mesquita
A Estrada do Rei seguia em linha recta pela paisagem árida e monocromática a sul de Kerak, enquanto um leitor de cassetes que parecia tão velho como a mítica rota, se esganiçava numa animada canção pop-árabica. A fortaleza dos cavaleiros de Cristo ficava para trás, lá no alto, bem como a sensação electrizante, para um amante de História, de ter pisado um verdadeiro palco das cruzadas.
O guia baixou o volume da música e começou a desfiar, em espanhol, um rosário dos nomes ilustres que percorreram, nos últimos 5 milénios, mais coisa menos coisa, aquela mesma estrada: Lot (o de Sodoma e Gomorra?), Moisés, o bravo Saladino, Renaud de Châtillon, Lawrence da Arábia...
Eram os nossos últimos dias na Jordânia e seguíamos para Aqaba, onde nos esperava o mar vermelho e os seus corais, mas antes disso, faltava uma pequena paragem: Wadi Rum, o Vale da Lua - وادي القمر.
Os jipes brancos estavam alinhados à nossa espera, cada qual com a sua capota esvoaçante, de tecido multicolor, e o seu condutor beduíno. A nós calhou-nos o “pintas”, sim, porque em todo o lado existe sempre um, um beduíno cheio de estilo, de túnica branca, que aproveitava todas as paragens para se mirar no espelho exterior do jipe e dar um jeito à Kufia. Vaidoso? E com razão, diziam as mulheres do grupo. Enquanto eu admirava as formações rochosas na belíssima paisagem lunar, ouvi-as segredar: “Os beduínos são os homens mais bonitos do mundo!”. Viajar é isto mesmo: uns maravilhados com o monte de rocha a que Lawrence da Arábia chamou os “Sete pilares de Sabedoria”, outras hipnotizadas pelos olhos verde-água do nosso condutor. A foto não lhes faz justiça, nem a um nem a outro, até eu consigo ver...
Duna acima, duna abaixo, os jipes lançaram-se ao despique, levantando nuvens de poeira numa sacudida corrida pelo deserto, que o nosso “pintas” fez o favor de perder. Não ficámos tristes.
Subimos afloramentos de rocha vermelha, descemos vertiginosas dunas de areia escaldante e finíssima (por favor, não vão de sandálias, aprendi isso da pior maneira) e por fim, bebemos chá beduíno a ferver, numa tenda de pêlo de cabra, um verdadeiro refresco no calor abrasador do vale. E ainda estávamos só a gozar o fresquinho da manhã...
À tardinha, na aldeia beduína de Rum, enquanto uns dormiam a sesta, outros não queriam perder um minuto e fizeram-se ao caminho. O destino? A bocarra escancarada do Inferno, ou pelo menos parecia, tal o calor. Na verdade caminhámos até às ruínas de um templo nabateu antiquíssimo, dedicado a Al-lat, e que, por misericórdia de Alá, estava À SOMBRA!
Mesmo por cima de nós, a 1734 metros de altura, erguia-se Jebel Rum, uma impressionante montanha de pedra que cobria metade do vale com a sua sombra protectora e o seu silêncio... ou não... Gritos soavam pelas paredes a pique. Chamamentos, risadas. Entreolhámo-nos com espanto. Um beduíno que passava explicou-nos que eram pastores e que se olhássemos com atenção podíamos vê-los no trilho que rasga a face da montanha. Franzimos os olhos, escutámos melhor... Ah, ah! Lá estavam eles! Formigas doidas a trepar uma parede...
O regresso à aldeia foi de camelo. Wow! Aquele sacão que o bicho dá a pôr-se de pé... O condutor era o filho do chefe da aldeia, ou foi o que ele me disse. Não quis que lhe pagasse pela boleia, disse que tinha de ir para os meus lados de qualquer forma. Chamava-se Ahmed e ofereceu-nos a casa dele para pernoitarmos, mas já tínhamos outros planos…
Do outro lado do vale, atrás de Jebel um Ishrin, uma montanha quase gémea da Jebel Rum em altura, ficava o acampamento beduíno onde íamos passar a noite. Uma fogueira, uma tenda beduína com mantas no chão, canadianas do tempo da 2º Guerra, uma bomba para tirar água não potável para lavar a cara e as mãos poeirentas e um tacho enorme de conteúdo misterioso... a ser enterrado na areia com brasas incandescentes.
“Vão brincar enquanto o jantar não está pronto”, parecia dizer-nos o nosso cozinheiro beduíno enquanto vigiava o monte de areia. E nós fomos... Pela sombra, que o sol já se escondia atrás de “um Ishrin”. Mas brincar com quê? O deserto estendia-se à nossa frente, dourado e interminável.. O mapa disse-nos que estávamos perto de uma nascente na rocha, conhecida pela “Fonte de Lawrence da Arábia” e por isso trepámos… e trepámos… Lá do alto, vimos um acampamento beduíno real, que o nosso era só para turista ver. O silêncio era esmagador, cortado aqui e ali pelos cães do acampamento.
Por fim, a fonte! Um fiozinho de água lamacenta com vista para o inesquecível. Palavras para quê, ficam as imagens.
De regresso ao acampamento, ao anoitecer, os beduínos desafiaram-me a fumar com eles, não me lembro em que idioma: “Prova lá este que é de canela” e “E agora este que é de menta”. O nosso guia bem me avisou que o tabaco dos beduínos era forte e que por vezes, eles faziam misturas… O resto da noite aparece-me em flashes tão desfocados como esta última foto, todos acompanhados pela alegre banda sonora gorgolejante do cachimbo de água.
Dizem que dancei com os beduínos à volta da fogueira, que comi o Mansaf assim que o tiraram do chão, sem estranhar a cabeça de cabra pousada em cima do arroz. Dizem que me deitei para ver as estrelas, tantas, tantas, que o céu se tornou assustador de tão vasto e tive de fechar os olhos. Dizem que dormi a noite toda como um bebé, enrolado no cobertor áspero e sem ter lavado os pés poeirentos. Nota mental: Não fumem coisas que não conseguem identificar.
Pois eu só me lembro de acordar no deserto e sentir-me novinho em folha. Saltei para o jipe para deixar o Wadi Rum e virei-me para trás uma última vez, sem medo de me transformar numa estátua de sal.
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