Bilhete-postal enviado por Ana Pinho

Não posso concordar a cem por cento com esta afirmação do poeta. Para viajar há que ter companhia (nem que seja a dos nossos sonhos e pensamentos!) para partilhar todos os belos momentos, recantos e histórias, todas aquelas aventuras e peripécias que valem a pena ser vividas junto daqueles de quem mais gostamos.

E foi o que aconteceu no passado mês de março. Eu, o meu irmão e uma amiga viajámos para Istambul, a cidade onde a Europa beija a Ásia. Foram dias maravilhosos, marcados por muita animação, cores, cheiros, sabores, melodias de encantar! E, como não poderia deixar de ser, mil e uma peripécias! E eis que vos vou falar de uma especialmente marcante!

Um dia, ao anoitecer, vivemos uma situação deveras caricata, quando estávamos a atravessar a ponte Galata. Um engraxador de sapatos caminhava, em sentido contrário, provavelmente regressando a casa depois de um dia de trabalho, carregando um cesto de madeira onde guardava os seus materiais e ferramentas do ofício.

Entre a confusão de pescadores, turistas, vendedores de rua e locais que caminhavam apressadamente, ansiosos para chegar aos seus lares, reparámos nele! E, no momento em que o jovem engraxador de sapatos passava ao nosso lado, escorregou uma escova de engraxar sapatos do cesto. O engraxador de sapatos não pareceu aperceber-se do sucedido, por isso a minha amiga, a Joana, apanhou-a de imediato e chamou o rapaz, acenando alegremente com a escova em riste.

O engraxador, muito agradecido, ofereceu-se prontamente para nos escovar as sapatilhas e, após negarmos inicialmente, acabámos por ceder à sua oferta, face a tanta insistência, mais por receio de o ofender do que propriamente por precisarmos de graxa nos ténis. O rapaz perguntou-nos de onde éramos, gritou vivas a todos os portugueses, e pediu-nos insistentemente que o deixássemos pôr-nos graxa nos ténis, para nos recompensar pela nossa atitude.

Entretanto, aproximou-se outro engraxador de sapatos, que se apresentou como primo do primeiro e, de imediato, se prontificou a ajudar a pôr graxa nas sapatilhas. Durante aqueles dez minutos em que os homens nos davam graxa, no sentido literal e figurado, rimos, conversámos e convivemos.

No preciso momento em que terminaram de escovar a última sapatilha, a sua postura transformou-se radicalmente. Apesar dos nossos sapatos continuarem um pouco sujos, agradecemos cordialmente. O primeiro instinto do meu irmão, ao ver as mãos que se estendiam na nossa direção, foi cumprimentar o primeiro homem, mas ele retorquiu de imediato em inglês: “No, no! Money!”.

De cócoras, curvaram-se para a frente, com as mãos estendidas acima da cabeça, enquanto nos pediam dinheiro da mesma maneira obstinada com que anteriormente nos tinham pedido que aceitássemos a sua oferta.

Gostava que alguém tivesse gravado aquele momento para poder ter noção da minha própria cara. As expressões de incredulidade na cara do João, o meu irmão, e da Joana, a minha amiga, não esqueço nunca mais! Estávamos descompostos, completamente aparvalhados e imobilizados perante aquele cenário. Aqueles turcos, com a sua falsa modéstia e gratidão fingida, tinham-nos enganado!! Então os senhores fizeram questão de se oferecerem para nos engraxar os sapatos e agora pediam pagamento?!

Ao fim de um tempo que nenhum de nós consegue quantificar, de tão petrificados que estávamos, lá me mexi para tirar 3 moedas da carteira, não fosse surgir mais problemas. A reação deles foi algo cómica, algo desconcertante!

Eles recusaram as nossas moedas e reclamavam: “No, no! Paper money, paper money.” Então os engraxadores queriam papel?! Quando nos pediram notas, sentimos que já estavam a abusar da situação. Negámos-lhes as notas, deixámos as moedas e virámos costas.

Este episódio ficará para sempre gravado na nossa memória. Na altura, fiquei muito indignada com o sucedido (zangada até!), mas o meu irmão, mais tarde, virou-se para mim e disse-me: “Não te preocupes, Ana, agora já tens mais uma história para contares aos teus netos, a do dia em que foste enganada por dois turcos!”.

Claro que, na altura, nem desconfiávamos que episódios deste género seriam múltiplos na nossa jornada em terras turcas porque, se fomos muito bem recebidos na Turquia, a verdade é que tivemos sempre de pagar para que tal acontecesse. Pagar para aprender!

Na realidade, esta história verídica, que na altura nos perturbou, agora parece-nos bem hilariante! Para além da lição que tirámos daqui, ainda conseguimos arrancar fortes gargalhadas sempre que a contamos à família e aos amigos sobre aquela passagem em que fomos enganadas por dois turcos em cima da ponte.

Como dizia o escritor francês Gustave Flaubert: “Viajar torna-nos modestos. Tu vês o quão pequeno é o lugar que ocupas no mundo."