Ao longo de uma semana, Nuno Fernandes, 46 anos, empresário, juntamente com outros participantes, embarcou num dos programas Walking Mentorship e fez o caminho Via de La Plata, um antigo caminho comercial e de peregrinação que atravessa o oeste de Espanha, ligando Ourense a Santiago de Compostela. A sua experiência é aqui contada na primeira pessoa.

"Ainda hoje tenho como uma das melhores experiências da minha vida"

Acabado de passar a ponte de Atocha, já a entrar em Santiago, cruzei-me com um pequeno grupo de idosos - claramente locais - que entre os “Bom Camiño” me perguntaram de onde vinha, ao que respondi “Ourense”. Com ar entendido de quem já se cruzou com milhares de peregrinos, responderam - “Não é muito, mas bem vindo…”

Na verdade os cento e vinte e tal quilómetros que ali vinham terminar, agora parecem-me poucos, pois recordo com saudade cada um. Mas naqueles derradeiros passos da conquista do meu Camiño pareciam-me a maior epopeia alguma vez vivida e pesavam nas pernas na mesma medida.

Ri-me desse comentário e agradeci.

A alegria que sentia naquele momento deu um sabor doce e divertido ao ar jocoso e empertigado da velhota que desfazia da minha façanha.

A aventura tinha começado alguns meses antes, com o desafio de participar num caminho do projeto Walking Mentorship. A primeira conversa Skype com o Mentor - João Perre Viana - começou a preparar-me para o que ainda hoje tenho como uma das melhores experiências da minha vida. Entre os aspectos práticos - caminhadas de treino, calçado confortável e usado, mochila leve e reduzida ao essencial - e os exercícios mentais, a ajuda do João foi fundamental para que o meu Camiño fosse exatamente o que tinha que ser.

"Estava numa encruzilhada na minha vida, forçado a tomar decisões adiadas à quase 30 anos - o que considerando os meus 44 à data não eram pouca coisa"

Como referi, começamos a andar em Ourense, após 30 minutos de viagem de comboio a partir da Estação de Santiago de Compostela (o parque da Estação é um excelente local para deixar o carro durante o Camiño). São 30 minutos que nos demoram uma semana a fazer de volta, e esta primeira imagem é um pouco desconcertante.

Logo à saída da estação de Ourense são visíveis as setas amarelas que nos apontam na direção de Santiago.

Estar atento às setas amarelas é fundamental. E claro ter cuidado nos atravessamentos de estradas. Neste percurso da Via da Prata  em que o João nos leva há poucos troços em estradas com movimento automóvel, mas claro que a segurança é essencial - usar roupa colorida ou coletes de visibilidade. Outro aspeto a ter atenção são as fitas das mochilas que se podem prender nos camiões arrastando o peregrino com consequências frequentemente fatais.

As apresentações individuais entre os membros do grupo que foram acontecendo na viagem de comboio e ao longo da primeira subida para sair de Ourense até capela de S. Marcos da Costa, quando o fôlego o permitiu, estavam concluídas e era hora de começar a trabalhar no nosso processo interior. O nosso Mentor lançou o desafio de começarmos a fazer uma avaliação do nosso momento presente, o que nos trouxe até aqui e como nos sentimos.

O caminho mais rural, essencialmente em terra batida entre terrenos agrícolas e em pequenas estradas entre algumas moradias é ideal para esta introspeção.

“O Camiño que mudou a minha vida”
“O Camiño que mudou a minha vida” créditos: Nuno Fernandes

Quase a chegar a Tamallancos deparamo-nos com uma série de carvalhos seculares a bordejar o caminho - quais guardiões deste percurso milenar tantas vezes percorrido. Belíssimos e imponentes ostentam as cicatrizes da sua história - partidos e cortados mas nunca quebrados. Uma imagem forte para aliviar a crueza do nosso inventário interior.

Ao entrar em Tamallancos é imperdível a paragem no Via Stellae para um segundo pequeno almoço. Os anfitriões são muito simpáticos e o sumo de laranja natural e o “biscoicho” são perfeitos para repor energia e animo. E a mensagem na saída é sempre verdadeira - mas terá que ir lá para ver. 

Daqui segue a tirada para Cea, famosa pelo seu pão, onde parámos para comer no Sol e Luna de uns simpáticos Venezuelanos e para pernoitar no Albergue. (evitar a todo o custo a Pulperia do Jesus, que segundo os locais já está rico e não precisa de tratar bem os clientes).

O Mosteiro e os bosques mágicos

No segundo dia, o nosso Mentor levou-nos pelo caminho menos percorrido até ao Mosteiro de Oseira - um gigante antigo e mágico que repousa no seu vale encantado e alberga uma pequena mas feliz comunidade de irmãos Cistersienses. Por razões que desconheço, os guias do caminho recomendam uma alternativa a este percurso, que dizem que é muito difícil. Eu achei-o encantador e mágico e recomendo vivamente. Apenas a visita ao Mosteiro já justificaria o caminho, mas os bosques mágicos antes e depois do Mosteiro são imperdíveis.

Seguimos caminho por esses bosques mágicos em direção a Castro Dozon. Este troço caracteriza-se por subidas e descidas por veredas de pé posto abraçadas pela vegetação luxuriante e ao som dos regatos. No dia quente em que o fiz o ponto alto foi uma paragem numa pequena ponte onde nos descalçamos e mergulhámos os pés na água fresca do regato, com imediato efeito terapêutico e energético.

“O Camiño que mudou a minha vida”
“O Camiño que mudou a minha vida” créditos: Nuno Fernandes

Por esta altura os nossos recém-conhecidos companheiros de Camiño começam a parecer amigos de sempre e o ritmo do Camiño vai fazendo a sua terapia.

O tempo abranda e estica, e o corpo ajusta-se à mais natural atividade humana - durante milhões de anos andamos a pé - os primeiros cavalos foram domesticados há 10.000 anos e os carros têm pouco mais de 100. Andar é natural e a memória genética entra em ação muito rapidamente… mesmo se com movimentos entorpecidos e uma ou outra dor.

Ou mesmo com bastante dor, como me aconteceu neste primeiro caminho em que por erro meu, apenas treinei em piso plano e sem subidas e descidas, o que deixou o meu corpo a ganir ao fim do primeiro dia de caminhar em pisos mais irregulares e declivosos.

Mas também esta dor foi útil ao meu percurso e me ajudou a ganhar confiança na minha capacidade de me superar e de saber que sou capaz de muito mais do que aquilo que o meu cérebro acredita.

"O sentimento de conquista e dever cumprido mistura-se com a vontade de que durasse mais"

Os conselhos sábios do Mentor e o companheirismo dos restantes membros do grupo fizeram o resto, e apesar das dores a memória que guardo até hoje é de um tempo muitíssimo bem passado, vivido plenamente no presente. Apreciando cada vista, cada golo de água, cada gargalhada e cada mágoa da vida partilhada entre os participantes. A cerveja gelada numa tasquinha numa curva do caminho. O cheiro dos carvalhos nas florestas. O fantástico almoço em Bendoiro ou a inesquecível recepção de D. Manolo em Pazo de Galegos e o não menos inesquecível Alvarinho produzido pelo seu filho. 

E de repente estava a chegar a Santiago. O sentimento de conquista e dever cumprido mistura-se com a vontade de que durasse mais. Muito mais. Que tivesse ainda toda a semana de caminhada pela frente. Que não tivesse que dizer já adeus aos novos amigos que são já grandes amigos. Que em vez de voltar à vida normal pudesse continuar a andar o resto da vida, porque nada me parece mais natural.

“O Camiño que mudou a minha vida”
“O Camiño que mudou a minha vida” créditos: Nuno Fernandes

E o melhor é que continuo a andar, pois acabo o caminho com um plano de acção que me conduz à melhor versão de mim mesmo.

E continuo a partilhar as minhas conquistas e os meus desafios com os meus companheiros de Camiño pelo grupo do WhatsApp.

E conto com o Mentor para me dar uma mão quando preciso. E voltei a fazer o mesmo e outros caminhos, tomando nas minhas mãos a decisão de escolher o caminho menos procurado, mas que mais me torna feliz e realizado.