Por Juan Sebastian Serrano

Pipas repletas de ervas medicinais, maracas e tambores marcam as últimas horas de uma espera com mais de 300 anos: o povo tupinambá celebra a devolução de um raro e sagrado manto de penas vermelhas que lhes foi arrebatado durante a colônia portuguesa.

A exuberante peça, que estava no Museu Nacional da Dinamarca desde 1689, será apresentada oficialmente no Rio de Janeiro esta quinta-feira (dia 12), numa cerimónia na qual marcará presença o presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

O governo classifica a sua devolução como uma "restituição histórica" e adianta que existem negociações em curso para recuperar outros objetos indígenas que se encontram na posse de museus em França, Japão e outros países.

Confeccionado com penas vermelhas da ave guará sobre uma base de algodão com quase 1,80 metros de comprimento, o manto voltou ao Rio no início de julho e encontra-se na biblioteca do Museu Nacional.

Alguns indígenas já estiveram diante desta peça cerimonial confeccionada em meados do século XVI, segundo estimativas oficiais.

Ao vê-lo, senti "tristeza e alegria (...) Um misto de nascendo e morrendo", diz à AFP Yakuy Tupinambá, acampada junto a cerca de 200 tupinambás no parque Quinta da Boa Vista, onde está localizado o museu, que sofreu um grande incêndio em 2018.

Os europeus colocaram o manto "no museu como se fosse um zoológico, para seus estudiosos da arte". Mas "só esse povo [tupinambá] se comunica e dialoga com esse símbolo", explica Yakuy, com um cocar de penas e uma saia de fibras naturais.

Aos 64 anos de idade, percorreu mais de 1.200 quilómetros de autocarro desde o município de Olivença, na Bahia, para assistir ao evento. Enquanto isso, neste parque que outrora foi residência dos reis de Portugal, os tupinambás realizam uma "vigília" com música e cânticos.

Mais do que um símbolo

A devolução do manto, que se desconhece como saiu do Brasil, deve-se às negociações diplomáticas do governo Lula, alinhado com o movimento indígena.

No entanto, os indígenas ainda esperam que o Executivo se "sensibilize" com as suas reivindicações territoriais, uma questão pendente para o governo.

O manto "é nosso pai, nossa mãe (...) Os mais velhos nativos diziam que quando o manto foi levado nossa aldeia ficou um pouco sem rumo", explica o cacique Sussu Arana Morubyxada Tupinambá.

"Com o retorno desse manto, a aldeia agora vai ter mais um sentido: a demarcação do território pelo Estado brasileiro", acrescenta o líder indígena, que ostenta pinturas em grande parte do corpo.

Tupinambás
Tupinambás Membros do povo indígena Tupinambá realizam uma dança tradicional em frente à Biblioteca do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde o manto Tupinambá se encontra exposto créditos: AFP/Pablo Porciuncula

Os tupinambás reivindicam a demarcação de mais de 47 mil hectares onde vivem cerca de 8 mil famílias que dependem da pesca e da agricultura. Garantem que o território está a ser devastado pelo "agronegócio" e pela "mineração".

"Muitas dessas situações vão deixar de acontecer quando o governo demarcar nosso território", afirma o cacique Arana.

Em julho, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) denunciou que a delimitação dos territórios indígenas está "estagnada", apesar da "expetativa" despertada pelo regresso da esquerda ao poder, após um mandato "anti-indigenista" de Jair Bolsonaro (2019-2022).

Apesar de ser uma promessa de governo, apenas um punhado de territórios foi reconhecido desde que Lula iniciou o seu terceiro mandato em janeiro de 2023.

Basta!

Arana denuncia o crescente desmatamento nas suas terras por conta de grandes agricultores que destroem florestas para plantar monoculturas, num país que é uma potência agrícola.

Também afirma que várias empresas mineradoras estão de olho na floresta que cerca Olivença, pois sob o solo há lítio, níquel e silício, minerais indispensáveis para o fabrico de computadores e telefones.

A cerimónia de quinta-feira terá como pano de fundo a imensa nuvem de fumaça que envolve várias cidades do Brasil.

A pior seca da história do país provocou milhares de incêndios na Amazónia e os estragos são sentidos até mesmo em países vizinhos como o Uruguai e a Argentina, onde a fumaça se faz sentir.

"O retorno do manto significa, não só para o povo Tupinambá, mas para o povo brasileiro, um basta na devastação da Amazônia, da Mata Atlântica, do manguezal também", afirma o cacique Arana.

"Basta!", exclama o indígena.