Desde o primeiro dia em que os nossos passos se cruzaram com os deles, em que os nossos olhares se encontraram que, nas nossas palavras, deixaram de ser monges e passaram a ser os ‘meninos de cor-de-laranja’, como a pequena Mia os vê e diz.
Nesta manhã chovia em Pnhom Penh, descobríamos a cidade por ruas estreitas, escondidas da grande Sisowath Quay. Os meninos de cor-de-laranja andaram connosco esse início de manhã: os nossos passos seguiam-lhes os passos ou os passos deles adivinhavam-nos os caminhos. Fomos silenciosos.
Habituamos-nos a vê-los, a tê-los: ora perto, ora lá ao longe, mas presentes na composição da pintura dos nossos dias aqui: mudam-se os rostos, as rugas e as ruas que os acolhem, mas há sempre esse laranja que cobre a pele.
Nesse dia traziam guarda-chuvas que pareciam guardar a luz toda do dia e baixá-la sobre eles: iluminados, como quer o budismo. Às 6h00 já teriam deixado o templo, como todas as manhãs, e caminhavam para receber as oferendas – alms-giving – da comunidade. À sua passagem os corpos curvam, os olhares baixam e as mãos, depois de oferecerem o alimento, unem-se junto ao peito, enquanto os monges abençoam com palavras.
Nós vimos isto tudo - a Mia connosco.
Nunca se tocam, o presente – é assim que é entendido o alimento oferecido (arroz, fruta fresca, etc.) – é colocado na tigela ou no saco em pano, aberto pelo monge para o receber.
Os monges nunca pedem nada, e quem oferece não o vive como uma forma de caridade. É um vínculo que aqui se reforça, entre as comunidades monástica e leiga. É de humildade e de generosidade que se trata e não de mendicância e pena. Uma troca onde cada parte oferece o que tem, onde cada um recebe o que precisa: alimento físico por alimento espiritual.
Nós vimos isto tudo – a Mia connosco. Não sabíamos quanto, do todo que vimos, tinha sido visto por ela. Não sabíamos quanto, do todo que ela tinha visto, tinha sido compreendido por ela; nunca lhe perguntamos. Dias depois, passamos pelos muros do Palácio Real e cruzamos três meninos de cor-de-laranja (como conta a primeira foto), depois de lhes sorrir, parou e enquanto os via seguir caminho disse-nos: – são os meninos de cor-de-laranja; são muito importantes.
E, ganho a certeza: os nossos olhos só em tamanho serão maiores que os dela.
Não o sabendo, a forma que ela encontrou para os dizer tem muito de verdade, na grande maioria dos casos, são todos muito meninos, habitualmente de seis/sete anos, quando chegam para se tornarem monges. A história parece repetir-se todos os dias, as questões religiosas e as dificuldades económicas estão habitualmente por detrás do envios dos filhos para um templo budista.
Do lado das crianças, muitas são as razões para ‘aceitar’ este caminho e, não raras vezes, a de seguir os ensinamentos de Buda pode não ser a mais forte, pelo menos num primeiro momento. A possibilidade de estudar, em vez trabalhar, vender ou pedir na rua; ter alimento e um teto onde ficar, levam, todos os dias, muitas crianças até ao templos.
O budismo no Camboja sofreu fortes danos durante o Khmer Vermelho, nessa altura a religião foi proibida e os templos destruídos, os monges foram forçados a trabalhos. Estima-se que mais de 50.000 monges tenham morrido ou sido mortos durante este período. Ainda hoje os templos continuam a ser reerguidos e restaurados e o budismo a reconstruir-se, na vida de todos os dias.
Este artigo foi originalmente publicado no blogue Menina Mundo.
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