Era hora.

O momento que tanto ansiávamos estava prestes a começar. Ao início da manhã, fomos até ao hotel onde iríamos deixar a Caracunda por uns dias e onde nos encontraríamos com toda a equipa: guias de montanha, carregadores e cozinheiro, mas também os nossos colegas de subida.

Depois de encontrar toda a comitiva, uma breve viagem de “dala-dala”, nome dado às carrinhas de transportes de passageiros na Tanzânia (sim, a nossa Caracunda na Tanzânia não é um chapa mas um dala-dala), levou-nos até ao portão da rota Machame do Parque Nacional do Monte Kilimanjaro, a montanha isolada mais alta do mundo.

Apeando em declive no teto de África. Crónica de uma subida ao Monte Kilimanjaro
créditos: De Chapa em Chapa

O maciço do Kilimanjaro é composto por dois montes principais: o Kibo e o Mawenzi, sendo o ponto mais alto no primeiro.

A confusão era imensa, tal IC19 em hora de ponta.

Centenas, senão mesmo um milhar, de pessoas reunidas: uns em busca de um sonho - chegar ao topo do Monte Kibo: Pico Uhuru (Suahili para Liberdade); outros a tratar das burocracias necessárias, outros a fazer alugueres ou vendas de última hora como gorros, luvas ou bandeiras.

Os sentimentos ficam à flor da pele, tudo é intenso dada a magnitude do que nos espera. No meio de tudo isto... o André não resistiu a alugar uma bandeira portuguesa. Enquanto aguardávamos luz verde para entrar no parque, processo que demora cerca de uma hora, para assinalar o início de caminhada, fomos à tradicional foto de família. Todos alinhados, à espera de ouvir um clique, e o André recebe uma mensagem amarga que jamais imaginaria naquele momento: SEM CARTÃO SD!

A sensação é a de... bem cada um saberá o que pensaria, mas confessamos que alguns impropérios foram enérgica e emocionalmente proferidos.

A poeira assentou e perante este cenário restavam duas hipóteses: carregar a máquina e objetivas durante uma semana a subir montanhas sem as poder usar ou voltar à cidade de Moshi para ir buscar cartões.

O motorista do dala-dala liga o carro, uma prima da Caracunda, e, pelo rosnar do motor, dava vontade de pôr todos os cintos de segurança existentes.

Uma viagem a não repetir que, nalguns momentos, chegaria a fazer corar de vergonha alguns monstros do desporto motorizado.

A verdade é que, uma hora e duas multas de excesso de velocidade depois, estávamos de prontos para começar a caminhar, agora com cartões SD na máquina e até alguns extra.

O primeiro dia, supostamente um dos mais exigente com 11km e uma subida dos 1800 aos 3000m, foi o suficiente para perceber que a caminhada até ao topo seria tranquila e o desafio, provavelmente, não seria físico.

Sentíamo-nos prontos e preparados para o que aí vinha.

Apeando em declive no teto de África. Crónica de uma subida ao Monte Kilimanjaro
créditos: De Chapa em Chapa

Desta vez, a exigência do percurso apenas se faz sentir ligeiramente nas pernas. As costas gozam folga, porque, desta vez, ao contrário de quando subimos o ponto mais alto de Moçambique e do Malawi, não carregamos mochila, apenas as coisas para o dia. Os pés também agradecem esta alteração e ficam claramente mais confortáveis no processo.

Depois de 4h de caminhada, ao invés das 6h planeadas, chegámos ao Machame Camp e era tempo de celebrar a conquista do primeiro dia. A equipa estava animada, longe de estar cansada e ninguém apresentava qualquer sinal de doença de montanha.

A conversa prolongou-se durante um jantar digno de realeza, mas, eventualmente, todos sentíamos que era tempo de descansar. A noite caíra e o frio na rua já não se aguentava sem agasalhos mais sérios.

Na manhã seguinte, após uma bela noite de sono, todos estávamos prontos para enfrentar o novo dia.

Bem... quase todos. A Joana sentiu-se de tal forma indisposta, chegando mesmo a vomitar, mas ainda com vontade, força e coragem para se fazer ao caminho. Caminho esse que se mostrou implacável, pois cerca de 500 metros mais tarde, tomámos a decisão de voltar para trás e recuperar no campismo.

Perante toda a envolvente era preciso analisar calma e ponderadamente, pois apesar de tudo indicar que a Joana estava a sofrer de um intoxicação alimentar de uma refeição feita na cidade, antes da caminhada começar, era necessário despistar a sombria hipótese de que a doença súbita de montanha relacionada com a altitude se estivesse a instalar.

Assim, com muita água, chá, bolachas, alguma medicação, controlo apertado da saturação de oxigénio e da frequência cardíaca e muitas, mas mesmo muitas, horas de sono, a manhã seguinte ergueu-se com uma mulher recomposta e pronta para o desafio.

Kilimanjaro
créditos: De Chapa em Chapa

A nossa equipa havia continuado no dia anterior, o que nos retirou as comodidades que tínhamos inicialmente, mas agora sim, estávamos ambos preparados e com ganas de palmilhar terreno.

E assim foi. Se no primeiro dia após a recuperação, tivemos um ritmo abaixo do nosso normal, mas ainda assim acima da média, nos seguintes deslizámos pela montanha, nalguns casos literalmente.

Dia após dia, chegávamos ao campo seguinte sempre com a sensação de que poderíamos continuar, porém, impunha-se saber parar. Saber parar, apreciar e dar ao corpo tempo para se acomodar às novas condições e à nova altitude. Por outro lado, como aprendemos com uns ultra-fit amigos dinamarqueses: de que vale chegar de um campo ao outro num instante se não aproveitamos nada do trajeto?

Assim, seguíamos entusiasticamente com a alegria de quem, a cada passo que dá, chega à maior altitude que alguma vez havia chegado. Até então, o ponto mais alto onde já havíamos chegado era o monte Sapitwa, no Malawi, com 3003m de altitude. Agora, a cada passo, essa marca ficava para trás como se de um marco longínquo se tratasse.

Apeando em declive no teto de África. Crónica de uma subida ao Monte Kilimanjaro
créditos: De Chapa em Chapa

Os alertas de doença de montanha seguem ora na mente, ora na voz do nosso guia, o Abel Wanjara, que nos procura fidelizar ao pole-pole (pouco, pouco). No fundo, a ideia é cumprir com o velho ditado português: ir devagar para chegar depressa. Dar tempo ao corpo. A alegria de sentir o corpo a reagir a tudo com naturalidade alenta-nos e assim seguimos a desfrutar cada passo, na ânsia de chegar ao cume. Para nós, importante por ser o mais alto de África, este continente que nos acolheu como casa e nos surpreende a cada fronteira e a cada encontro.

Subir o Kilimanjaro é, sem dúvida, trabalho em equipa, mas também um grande exercício de confiança. Desde os carregadores, ao cozinheiro, ao guia e mesmo à equipa de logística que fica na cidade base, todos fazem um esforço para que a missão chegue a bom porto e para que seja seguro e agradável.

Confiar impõe-se, mas, se pensarmos bem, como não confiar no nosso guia? Alguém que já chegou ao cume do Kilimanjaro mais de 150 (!) vezes. A pessoa mais velha que subiu com ele tinha 79 anos. Já subiu com um grupo de mais de 60 pessoas, batendo o recorde do Guiness de maior grupo ou com grupo que subiu a pé e quis descer parte do trajeto de balão de ar quente. Já viu de tudo.

Certamente, o Wanjara tem de ser alguém que sabe o que faz.

Ficar para trás no segundo dia fez-nos perder as comodidades iniciais como tenda de refeições ou a tenda com uma casa de banho privada, mas teve o maravilhoso condão de nos aproximar do nosso guia, do cozinheiro (ou stomach engineer como carinhosamente são apelidados) e dos carregadores. A partir daí, sim, estávamos como tanto nós gostávamos, terra a terra. De repente, estamos 9 pessoas na tenda que era cozinha e abrigo do staff a fazer as nossas refeições, mas melhor do que isso a jogar Uno. A divertirmo-nos e a rir todos juntos. Já não havia carregadores, nem guias; nem trekkers, nem cozinheiros; havia somente pessoas. Havia o Wanjara, o Ima, o Chidja, o Amisse, o Kiba, o Sallom, o Baraca, a Joana e o André.

Apeando em declive no teto de África. Crónica de uma subida ao Monte Kilimanjaro
créditos: De Chapa em Chapa

De repente, chegar ao Uhuru Peak já não era um sonho de uns, era um sonho de todos. Chegar ao Base Camp não foi um grande desafio, pelo contrário, foi talvez das caminhadas mais tranquilas (e bonitas) que fizemos. Porém, a simples tarefa de ir à casa de banho já mostrava ser agora um pouco diferente. Arfar em dois passos é sinal de que a vida aos 4600 metros de altitude é diferente para o corpo que está habituado a viver bem mais próximo do nível do mar. Era hora.

O momento ansiado chegara.

Seis dias depois, entre florestas, pedras, peripécias e sobressaltos, estávamos no Barafu Base Camp prestes a iniciar a ascensão ao pico.

Acordámos às 23h para iniciar uma caminhada prevista entre 6 a 7h até ao cume. Porém, acordámos também com uma notícia que tanto abominávamos: durante as 3h que estivemos a descansar, esteve também a nevar.

Sabemos que a neve tem um encanto especial, nós também o sentimos, mas a verdade é que quando se precisa de caminhar 5km, durante a noite, subir dos 4600 aos 5895m, a neve e gelo acrescem uma camada de dificuldade que facilmente dispensaríamos. O vento e as temperaturas negativas para nós já eram desafiantes o suficiente.

Apeando em declive no teto de África. Crónica de uma subida ao Monte Kilimanjaro
créditos: De Chapa em Chapa

Apenas 5 km de caminhada até ao topo. Só 5. Perguntámo-nos várias vezes o porquê de tantas horas, antevendo que isso traria também a resposta à razão pela qual a palavra mágica "pole-pole" era proferida tantas vezes. Tembea (caminhamos), sim, mas pole-pole.

O "pouco a pouco" é necessidade e missão.

Mesmo quando achamos que podemos caminhar mais rápido há quem nos chame razão: o guia ou o coração que palpita extra depois de dois passos em slow motion um pouco menos slow.

Volta a soar o "pole-pole".

Acima dos 4500m, todos os passos custam, mas felizmente todos os passos contam. À dificuldade em caminhar, associa-se o frio que, embora já esperássemos, seria impossível de conhecer até o enfrentarmos. A neve que congela todos os possíveis assentos que se veem à luz das lanternas e o vento que corta dos dois lados da encosta.

Os passos somam-se.

A noite já escura, parece ficar cada vez mais sombria. O Wanjara conta-nos que subir de noite é melhor para que não seja possível ver tudo que está à frente. "Assim, as pessoas não têm tanta vontade de desistir porque não vêem o que falta", dizia ele com tom de quem relativizava o que estava a acontecer. Pudera, no fim de subir mais de centena e meia de vezes, acreditamos que passe a ser trivial.

Ainda falta? Não se sabe. A escuridão é suficiente para encobrir quase tudo e embora sejam vários os grupos que caminham, a solidão instala-se em cada corpo. A solidão de quem caminha com o pole-pole, ao frio e a sentir que a altitude começa a tentar adormecer o corpo. Ainda assim, desistir também não parece grande opção, nem merece grande atenção, até porque isso significaria caminhar na mesma, não há outra forma de sair, não ali.

Por outro lado, caminhar debaixo de uma lua quase cheia, permite parar, desfrutar e contemplar, mesmo uma versão muito distorcida da realidade que nos envolve.

Silêncio. Silêncio apenas interrompido pelo vento cortante que passa e alguns ocasionais cânticos motivacionais.

Mais silêncio.

Pole-pole e aplausos ao longe.

Entre o nosso caminhar arrastado é audível a alegria do grupo à nossa frente. Essa alegria contagia-nos, sem sabermos muito bem porquê, nem o seu significado, mas o Wanjara apressa-se em esclarecer que o grupo em frente chegou ao Stella Point - 5756m. Chegáramos ao ponto de não retorno e o segundo ponto mais alto do monte Kibo. "Quem chega aqui, chega ao Uhuru e eu sei que vocês chegam", dizia confiante o Wanjara.

Seis horas depois de sair do campo de base, estávamos tão perto e tão longe ao mesmo tempo, pois o caminhar fica cada vez mais difícil e a escuridão continua a não trazer qualquer alento. A jornada já vai longa e extenuante, mas é preciso continuar a caminhar. A Joana sente-se a ficar sem forças e a ponderar se valerá assim tanto chegar ao topo, chega a pensar em desistir, mas o Wanjara não vai de modas e informa-nos que está na hora de continuar a caminhar. Ele tem a certeza de que ela consegue chegar.

O momento é tenso e frustrante, os sentimentos são muitos e difíceis de compreender. Repentinamente, num momento de clarividência e de calma, com um chá de gengibre nas mãos, reparamos nas cores do nascer do sol que começam a alaranjar o horizonte. A escuridão começa a dissipar-se e a dar lugar a um lusco fusco carregado de surpresas. Tudo fica claro, a montanha parece infinita, a neve estende-se por onde a vista alcança e os glaciares africanos tornam-se reais.

Caminhamos mais um pouco, o pole-pole prossegue e ao fundo pessoas e bandeiras, uma festa muito pouco movimentada de quem chega em extrema alegria mas demasiado estafado para dançar. Todos à exceção do André, que dá pulos de alegria e energicamente percorre cada canto, em passo de corrida, e sem luva na mão, em busca de mais chapas.

Precisaria de sempre mais uns minutinhos para fotografar em mais uma direção e mais um momento ou um sorriso exausto.

Sem darmos conta, ligeiramente inebriados, é a nossa vez de gozar os nossos dois minutos de glória, segurando uma bandeira de Portugal alugada, junto ao marco com a inscrição: Monte Kilimanjaro. "PARABÉNS, está agora no Uhuro Peak, Tanzania - 5895m". Ponto mais alto de África. A montanha isolada mais alta do mundo. Um dos maiores vulcões do mundo. Património Mundial e Maravilha de África. Muitos descrevem-no simpaticamente como o teto de África.

Uhuru Peak é o pico da liberdade. Foi aqui que a Tanzânia celebrou, comandada por Julius Nyerere, a sua independência, carregando a chama da liberdade até ao topo. Nós, orgulhosamente, também o sentimos um pouco nosso.

Kilimanjaro
créditos: De Chapa em Chapa

A energia é incrível. O momento é incrível. Conquistar um dos Seven Summits é para muitos, como nós, um dos feitos de uma vida. Por uns instantes, vive-se um estado de leve embriaguez e êxtase em que o mundo pura e simplesmente para. O nascer do sol no timing perfeito, o sorriso das pessoas, a luz que ilumina o cenário. Tudo está ao nível do mais idílico e de uma forma que parece ser impossível de imaginar até para a mente humana mais criativa.

Tudo é, por momentos, perfeito.

Quando se cai novamente na realidade, repara-se que tudo congela, incluindo as nossas pestanas e a água dentro das nossas mochilas e muitos são os que começam a descer amparados pelas equipas. Os 50% de oxigénio disponível fazem-se sentir e tornam-se implacáveis mesmo aos corpos mais preparados. Com estes sinais de alerta, é imperioso começar a descer.

São 6h30 da manhã, estamos felizes e cansados e ainda temos muito que palmilhar, mas, caraças, o pico da liberdade está conquistado!

Fevereiro de 2023 – Por Joana Patrício e André Peixoto

A Joana e o André estão a fazer uma viagem por África a bordo da Caracunda, nome da Toyota Hiace transformada em autocaravana que partiu de Moçambique com destino a Portugal. Podem seguir esta aventura através do Instagram De Chapa em Chapa.