15 de Junho de 2021

Saranda, Albânia

Lembro-me de acordar entusiasmada. Já sabia que tínhamos à nossa espera um dia em cheio. Por norma, eu não faço parte do planeamento dos nossos roteiros. Sou surpreendida pela viagem e essa é uma das vantagens de ter o meu guia de viagens particular sempre pronto a estudar mapas e pesquisar destinos. Não sabendo o que aí viria, sabia, contudo, que seria muito bom, porque o Bruno não conseguia conter o entusiasmo. Acordámos cedo e comemos umas cerejas, sentados no sofá da sala, de frente para a varanda com vistas de mar. O tempo quente tira-nos a fome e fruta fresca era tudo o que nos apetecia.

- Siga buscar o carro?

- Siga!

Em tantos anos a viajar, esta era a primeira vez que íamos alugar um carro. Como era possível? Gostamos de nos imiscuir nos hábitos dos locais. Partilhar dos seus comboios e autocarros. Observar as rotinas de quem vive o seu quotidiano enquanto exploramos recantos novos. Isso e, claro está, porque os preços são incomparáveis. Seria a primeira vez. Depois de tantos anos nestas andanças, uma primeira vez! Que bom, não é?

A viagem começa e permito-me relaxar. O rádio não funcionava, mas as minhas memórias têm claramente banda sonora. Estávamos de folga, a viver num país novo, vidros abertos e a boa disposição a invadir o corpo e a alma. O plano era bom: percorrer a estrada SH8 ao longo da Riviera Albanesa e conhecer vários pontos de interesse. A nosso favor tínhamos quase tudo: a estrada é boa e confortável de percorrer, as vistas são inesquecíveis e as pequenas vilas onde fomos parando uma verdadeira ternura. Só não sabíamos que chegaríamos ao final do dia a desejar ter controlo sobre os ponteiros do relógio, porque havia tanto para ver, tanto para desfrutar, e um só dia não foi suficiente.

Primeira paragem: Dhërmi. Carro estacionado à entrada da cidade e começamos a explorar. Não é preciso muito para nos enamorarmos: dois passos rumo à berma e somos brindados com a imagem de marca deste primeiro ponto do roteiro. A encosta em tons de verde abundante repleta de casinhas brancas em perfeito desalinhamento, e a paisagem envolvida num forte azul do topo até à base – a cor do céu a confundir-se com o mar no horizonte. É algures aqui que o mar Mediterrâneo se mistura com o Adriático. Subimos ruelas e escadarias íngremes à procura das melhores vistas. Há uma torre de relógio com uma cúpula azul claro que se destaca na paisagem. O que é isto que nos percorre? Deve ser gratidão, certamente. Dou por mim a notar as flores cor-de-rosa, os telhados num tom suave de tijolo, o verde a salpicar a paisagem. Não tarda, e está na hora de regressar à estrada. O sorriso pateta estampado no rosto e voltamos ao nosso Fiat Panda amarelo canário.

Dhërmi
Dhërmi créditos: Circum Mundum Blog

A SH8 estende-se pela Riviera Albanesa e vai revelando paisagens que não podíamos ter previsto. A próxima etapa do roteiro leva-nos a uma rua estreita, de dois sentidos, conhecida por causar algum stress a quem a percorre – é que quando dois carros em sentidos contrários se encontram, há que recuar até que tenhamos espaço suficiente para seguir viagem em sentidos opostos. O nervosismo passou depressa quando percebemos que o local estava deserto. Depois, estacionámos no descampado e seguimos a pé. A princípio, apenas uma estrada de terra batida repleta de calhaus e rodeada de arbustos. Começamos depois a perceber que caminhamos por uma encosta íngreme.

É de súbito que a paisagem nos arrebata. As águas de azul profundo dão lugar a um azul tropical e percebemos que o espaço é só nosso. Talvez estivessem umas cinco ou seis pessoas por aquelas bandas, mas o areal é extenso, o cenário é de filme, e nem notamos a sua presença: bem-vindos ao paraíso! Atirámos a mochila ao chão, estendemos a toalha e tirámos as sapatilhas à pressa para correr mar adentro. O mar é tranquilo e pacífico, com uma ondulação suave, como se o vento soprasse de forma gentil com medo de nos afugentar. Estão certamente mais de 20º dentro de água e uns 30º cá fora. De forma intencional, gravei o momento na memória: uma praia deserta, uma paisagem digna de fundo de ecrã, e o melhor companheiro de viagem que poderia escolher. A felicidade deve ser desta cor. Passamos breves minutos ao sol para secar os corpos e caminhámos rumo à densa floresta que se esconde ali naquele pequeno paraíso perdido chamado Gjipe. Trata-se de uma praia envolvida em falésias, um canyon verdejante cheio de vida.

O dia ainda agora começou e já fomos brindados com tantas emoções! Estamos rodeados de natureza viva. Como que escarpas imponentes, as paredes do canyon vão-nos engolindo a cada passo que damos. Como um oásis resplandecente a meros metros do areal. O facto de não haver ninguém por perto só contribui para nos alimentar a ilusão de que somos os protagonistas de algo muito especial – como os sobreviventes de um avião despenhado que agora exploram a selva densa de uma ilha misteriosa, ou os arqueólogos de renome que se aventuram em busca de construções milenares escondidas na densa floresta, perdidas no tempo. A imaginação é fértil, mas de pouca dura. Damos meia volta e regressamos para contemplar a praia mais uma vez antes de seguirmos viagem rumo a um novo ponto do roteiro. Pelo caminho, a promessa de que regressaremos.

Gjipe
Gjipe créditos: Circum Mundum Blog

Vamos ondulando pela SH8 a um ritmo lento como se de uma qualquer publicidade de perfume se tratasse, tal a beleza da paisagem. O próximo ponto do roteiro não foi planeado, na verdade. Ao passar não pudemos resistir e decidimos estacionar por alguns minutos e passear por Vuno: um amontoado de casas brancas com portadas de madeira a proteger as janelas. Os telhados cor-de-laranja contrastam com o verde das árvores e das ramas de videira. As ruelas estreitas revelam detalhes em pedra, portões de azul vivo, flores bem espevitadas e um rafeiro que nos fez companhia por grande parte do percurso. A cada patamar de casas que se empilha em cima das anteriores a vista vai ficando melhor – o mar, sempre presente, sempre constante, o horizonte e a imperceptível linha onde o céu se esvai na imensidão azul do seu reflexo.

Mais uma voltinha, mais uma viagem, e desta vez conduzimos até Himare.

Não nos lançamos sobre a praia, mas sim rumo às ruínas do castelo. Avançámos por entre os escombros em pedra, as paredes desfeitas, as janelas sem telhado e os pedregulhos onde agora crescem flores, musgo e ervas. É aqui que nos sentimos mais como nós mesmos – sozinhos a percorrer as ruínas que um dia outros alguéns contruíram e habitaram, pedaços de história que o tempo acabará por engolir e esquecer. Por momentos, voltamos a ser os protagonistas. Algures ali no meio do que restou deste castelo outrora majestoso, vejo uma galinha a bicar o chão. A seguir outra. Depois, avisto duas ou três crianças que mal nos põem a vista em cima desatam a correr. Percebo, mais tarde, que foram chamar a mãe. A senhora surge de uma ruela estreita e convida-nos a visitar o seu café, ali a três passos de distância, no meio das ruínas. Era quase hora de almoço e tínhamos planeado comer qualquer coisa num dos muitos restaurantes junto ao mar. Mas, dadas as circunstâncias, aceitámos mudar de planos.

- Amazing views! – disse-nos de sorriso no rosto, aliciando a nossa curiosidade.

Seguimos o rasto de galinhas e crianças, entrámos na casa rústica e eis que vemos finalmente o pátio. O queixo só não cai porque está agarrado à cara! Que vistas soberbas! O pequeno terraço é uma pérola escondida, repleto de flores e com um enorme varandim virado para Himare e para o mar. “Às vezes é tão bom ignorar os planos e aceitar convites inesperados”, dou por mim a pensar.

- Serve refeições?

- Posso preparar umas omeletes.

Embora tenha sido uma refeição barata num espaço rústico, quando recordamos este momento só conseguimos descrever tudo como sendo um luxo e um privilégio. O sumo de laranja natural, as omeletes leves e fofas, cozinhadas a partir de ovos caseiros e, claro está,  o melhor deste almoço: a companhia! Uns minutos depois de nos instalarmos, um casal nos seus 70 entra e escolhe uma mesa. Tal como nós, são turistas. Estão a percorrer o país de bicicleta. Ela é polaca e ele é austríaco. A história de como se conheceram é tão fascinante que lhes prometemos repeti-la sempre que pudéssemos. Porque há histórias que merecem ser contadas.

Para efeitos de narrativa, permitam-me agora viajar no tempo: estamos na década de 60/70 e a Europa está dividida por uma cortina de ferro. Ele vai em trabalho até à Polónia e aproveita a deslocação para passar algum tempo numa estância de ski. Conhecem-se, engraçam um com o outro, passam semanas juntos. As semanas tornam-se meses. Mas chega a altura de voltar à Áustria. Procuram de todas as maneiras que ela possa acompanhá-lo. Chegam mesmo a escrever ao embaixador. Mas não foi possível. Separados por uma cortina de ferro, e num mundo sem internet, acabaram por perder contacto.

“Pensei que ela tinha morrido nas manifestações”, disse-nos. E os anos foram passando. Ambos casaram com outras pessoas. Constituíram as suas famílias. Afinal, a vida continua.

Mas o que tem que ser tem muita força. E depois de décadas sem se verem, e sem saberem do paradeiro um do outro, é através das redes sociais que se voltam a cruzar. E parece que nem um dia passou desde os tempos em que passeavam juntos pela Polónia. Agora, com as suas bicicletas, cheios de saúde, percorrem a Riviera Albanesa e desfrutam da companhia um do outro. Há que pôr a conversa em dia. Que história!

Mais tarde, naquele dia, abraçámo-nos e agradecemos a dádiva de podermos partilhar a vida juntos desde os 15 anos de idade. Quão sortudos somos?

Himare
Himare créditos: Circum Mundum Blog

Na Albânia descobri a importância de romantizar a vida que vivemos. Sermos os protagonistas de um filme. O que faria o protagonista nesta situação? Quantos filmes teriam acabado poucos minutos após começarem se o protagonista optasse sempre por jogar pelo seguro? Há que saber romantizar o que vai acontecendo.

Vai ver o pôr-do-sol. Vai correr à chuva. Que importa se é embaraçoso? Vai a cantar no carro. Baixa os vidros e aceita a humilhação de que os transeuntes não participem no flashmob que vislumbraste na tua cabeça.

Eu sofro de um mal de rigidez. Uma dificuldade enorme em simplesmente relaxar e permitir-me ser eu mesma quando está alguém a olhar. Sinto-me estranha nos meus movimentos. Passo tanto tempo na minha cabeça que já não sei estar no corpo. Levito para longe. Mas, na Albânia, senti-me a afundar em mim, senti o mundo a puxar-me para a existência – olha eu aqui a protagonizar uma qualquer película de estilo francês enquanto o carro deambula de vidros abertos pela estrada ondulante na encosta virada para o mar. Parecia especial.

E se parecia especial, se tinha gosto a algo especial, se ainda hoje me sinto especial ao reviver a memória daquele dia – então talvez tivesse sido realmente especial, e não apenas algo que parecia especial. Quem sabe?

Antes do final do dia, ainda demos um saltinho a Vuno, Qeparo, Borsh e Porto Palermo. Que grande aventura!

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