“One good thing about music, when it hits you feel no pain
So hit me with music, hit me with music now, yeah”

São os primeiros versos de Trench Town Rock, uma das mais conhecidas músicas de Robert Nesta Marley, o mais famoso cantor de reggae de sempre e que foi condecorado pela ONU com a "Medalha da Paz do Terceiro Mundo".

Mais à frente na mesma música:

“(Trenchtown rock) give the slum a try
(Trenchtown rock) never let the children cry”

E é com este trautear na cabeça – “dar à favela uma oportunidade/nunca deixar as crianças chorar” – que entramos em Trench Town, a favela mais famosa de Kingston, onde a pobreza e o crime são os protagonistas e as crianças e os jovens os mais vulneráveis.

Garfield Williams recebe-nos no Centro de Artes e Cerâmica de Trench Trown com um sorriso contagiante e conta-nos a sua história de forma intensa e emocionada. Afinal também é assim a sua vida. Cresceu em Trench Town, mas só veio a saber desta coincidência mais tarde. Aos seis anos, emigrou para Toronto – “a minha mãe queria que tivesse uma vida num sítio melhor” – e aí ficou durante décadas. Quando voltou à Jamaica, depois de várias voltas, acabou por se estabelecer em Trench Town, em 2011. A mãe ficou preocupada por ver o filho de volta ao bairro de onde tinha saído quando ele era ainda novo e de onde não guarda memórias. “Só aí é que soube que eu era deste bairro, foi muito místico”, conta.

Também a vida de Bob Marley deu várias voltas até chegar a esta favela. O músico nasceu em Nine Mile – uma pequena vila no centro norte do país, onde há um museu de tributo na sua casa de infância e o cemitério, onde está sepultado o seu corpo e o da sua mãe – e aos nove anos mudou-se para Trench Town, um gueto nos arredores de Kingston, a capital da Jamaica. Foi neste bairro que conheceu Bunny Wailer e Peter Tosh, que posteriormente viriam a fazer parte do grupo The Waillers. Foi daí que Bob Marley saiu para começar a divulgar a sua mensagem ao ritmo do reggae.

Ao mesmo tempo que a favela é repleta de problemas, é também um destino turístico de culto para quem quer saber um pouco mais da vida do artista e percorrer alguns dos seus caminhos.

Aberto desde 2012, o Centro de Artes e Cerâmica é um abrigo para crianças. “Mais do que as artes é um sítio para os miúdos estarem protegidos, não estarem na rua e evitar que entrem do mundo do crime”, explica Garfield. Dos 50 mil habitantes que vivem em Trench Town, 23 mil são crianças, conta ainda Mark Holding, deputado eleito pelo ciclo de St. Andrews (zona que integra este bairro) e um dos políticos mais influentes do país.

A olaria que transporta a mensagem de paz

De visita ao centro e em conversa com um grupo de jornalistas, Mark explicou que um dos maiores problemas do bairro é a pobreza, a par do consumo de drogas e o álcool. Falamos de drogas duras, já que ali, “a canábis faz parte da cultura”, admite ele que era ministro da Justiça, em 2014, e apoiou a descriminalização da posse e consumo desta substância, (dentro de certos limites legais) para fins recreativos, mas também medicinais, científicos e religiosos. Por exemplo, para os rastafáris, fumar esta erva é considerado sagrado.

Dos números oficiais, apenas 1% da população é rastafári. Mas o ambiente de música reggae, o misticismo que daí advém e o consumo de erva vai-se sentido pelo país. Há também um legado deixado por mensagens de paz, de justiça social e de amor refletidos na música. Garfield é também fã: “Acredito em tudo da música do Bob Marley”.

Além de ser um sítio procurado por turistas, aqui, bem como em muitas músicas do cantor, os protagonistas são as crianças. Trabalham em barro e fazem todo o tipo de peças em cerâmica. A olaria era o passatempo de Verona Williams, a mãe de Garfield. Trabalhou como cozinheira no Canadá durante décadas e foi nessa época que desenvolveu o gosto pelo trabalho com barro.

Verona Williams
Verona e Garfield Williams, mãe e filho, no Centro de Artes e Cerâmica Bárbara Gouveia

Quando se reformou, cumpriu o sonho de regressar à terra-natal e já na Jamaica foi o filho que meteu as mãos à obra e com a cerâmica continua a tentar moldar o bairro onde nasceu. “Ele tem esta paixão de ajudar os miúdos que ficam na rua e sem fazer nada, expostos a tantos riscos”, conta Verona, visivelmente orgulhosa do trabalho do filho.

O turismo como ponte para projetos sociais

“É um sítio onde podem vir aprender e ter um certificado. Sabemos que nem todas vão ter um diploma académico e vemos que muitas têm dificuldades na escola”, conta o fundador do centro.

A educação primária é obrigatória durante seis anos, dos 6 aos 11 anos. Mas a pobreza e outras condições sociais podem deixar as crianças em risco. Dados da UNICEF mostram que 1/3 dos rapazes adolescentes não estuda nem trabalha e ¼ das raparigas adolescentes já foram vítimas de violência sexual. Em 2017, 150 crianças foram vítimas de tiroteios e, em 2018, foram assassinadas 46 crianças na Jamaica. Tirá-las da rua é a prioridade de Garfield.

Trench Town
Centro de Artes e Cerâmica de Trench Town Bárbara Gouveia

O centro funciona aos sábados, já que durante a semana, as crianças estão na escola. Apesar da obrigatoriedade do ensino primário, nem tudo é fácil: “não podem ir para a escola sem uniforme e sem livros, temos um programa para ajudar as famílias a comprar estes bens”, conta o fundador do centro. Além disso, “há quem vá com fome para a escola e tentamos ajudar, nem que seja com algum dinheiro para comprar uma sandes”, explica Garfield.

Juntando o projeto social ao facto de ser um local muito procurado pelos turistas – há visitas, workshops de cerâmica e souvenirs para comprar –, desde 2020 que o centro é apoiado pela The Big Up Small Bussiness, um projeto da TUI Care Foundation e desenvolvido em parceria com a Travel Foundation, que promove o desenvolvimento de pequenas empresas, ajudando-as a criar mecanismos que possam vir a beneficiar do turismo.

Apesar de ser uma das maiores fontes de receita do país, não é fácil para as pequenas e médias empresas conseguirem furar entre o turismo de massas e as grandes empresas que operam nesta nação do Caribe. Para Manuel Ferreira, gestor de projeto da TUI Care Fountation, o apoio a esta empresa foi um pouco óbvio. Afinal, responde aos principais objetivos da fundação: “promover o turismo sustentável, o apoio a comunidades locais e a pequenos empreendedores”.

“Os turistas acabam sempre por cá vir para sentir a atmosfera. Querem dizer que dormiram no bairro do Bob Marley ou levar uma recordação”, conta Garfield.

Cantar no estúdio e percorrer as memórias do cantor

Seguir os passos do rei do reggae parece fazer parte do programa turístico de quem visita a Jamaica e a casa-museu é um dos sítios mais procurados. Do outro lado da cidade, a imponente casa e estúdios podem ser visitados. E há vários pacotes de visita, a começar nos 25 dólares (aproximadamente 23€).

Na primeira sala, podemos ver logo o Grammy que o músico ganhou em 2001. Marley nunca ganhou este reconhecimento em vida, mas foi premiado pelo que conseguiu ao longo da carreira após a morte.

Seguimos para o seu estúdio – sim, podemos cantarolar as músicas no local onde foram criadas –, e explicam-nos todo o processo de criação.

No andar de cima, encontramos os vários quartos, recortes da história de amor com Rita Marley e outras memórias de encontros com algumas personalidades históricas, além da sala de fumo e meditação virada para o jardim, onde gostava de jogar futebol com os seus filhos.

Não são permitidas fotografias, a não ser no exterior, no café One Love e na garagem, onde podemos ver um Land Rover Defender, o primeiro na Jamaica, trazido pelo cantor.

“One”, diz o guia. “Love”, respondem os visitantes. Termina assim a visita guiada à casa-museu. Sugestão para quem visite a Jamaica: comece por aqui a viagem, já que a história deste rastafári e o reggae marcam muito dos locais turísticos do país.

O SAPO Viagens foi até à Jamaica a convite da TUI Care Foudation.