Bilhete-postal enviado por Alice Barcellos
Não queria escrever uma declaração de amor lamechas, nem uma carta pessoal. Não se tratam cidades por tu, nem se fazem declarações de amor óbvias a uma cidade, principalmente, a uma cidade como o Porto.
Num destes dias chuvosos, ia a caminho de um restaurante com uma amiga, quando olho para o céu e, por desvio, dou de cara com uns azulejos na fachada de um edifício que nunca tinha reparado. Já passei por aquela rua vezes sem conta, julgando-me grande conhecedora por já ter visto cada loja, restaurante, janela ou azulejo. Mas não, juro que nunca tinha topado aqueles, que até saltam bastante à vista. O Porto é isso. É reparar num detalhe novo de cada vez que fazemos um pequeno esforço para olhar à nossa volta, ou até sem querer.
Não me lembro quando comecei a gostar realmente desta cidade, quando a tomei por casa, quando senti saudades. Mas hoje é assim, sinto que faço parte destas ruas e, quando estou longe, tenho vontade de voltar. Este inverno não tem sido fácil, muita chuva, muito vento, muito cinzento. Os prédios degradados da baixa ficam ainda mais feios e as ruas estreitas ficam ainda mais húmidas e escuras. Mas a chuva também fica bem ao Porto, que, como já ouvi dizer, fica mais londrino. Sem ser Londres, claro, porque o Porto é o Porto e é impossível comparar o incomparável. Desde já porque Londres não é a cidade que calhou de ser minha. De onde guardei memórias, fiz amigos e criei rotinas. Uma destas rotinas é atravessar pontes. E ainda bem, porque atravessar pontes é uma boa maneira de apreciar o Porto.
De manhã, começo pela D. Luís. Percorro a marginal de Gaia e aprecio sempre o casario a descer para o rio. Assim ao longe, parece uma maquete colorida, ladeada de granito. O trânsito dá-me mais algum tempo de contemplação. Se estiver nevoeiro, a paisagem ganha mais mistério e encanto, se estiver nublado, o cenário fica mais dramático, se estiver muita chuva, o rio está cheio e corre mais depressa do que o habitual. Mas o meu cenário preferido é o mais raro. Quando, por algum fenómeno, que não sei explicar, o rio fica um espelho de água e reflete toda a ribeira. Uma cidade reflexo, pintada no rio.
No fim do dia, volto muitas vezes pela ponte da Arrábida, onde a cidade se entrega ao mar e a luz do fim de tarde invade o carro. Às vezes, o trânsito está horrível, está a chover, é noite e quase esquecemos o privilégio de ter esta cidade aos nossos pés. Nos dias longos de verão, deixo as janelas do carro abertas, para que entre o ar quente e o som das gaivotas, que, naqueles fins de tarde, também atravessam a ponte, atravessam a cidade até ao mar.
Um amor também se alimenta de rotinas e estas travessias quase diárias vão alimentando o meu amor pelo Porto. Podia falar das suas gentes, do seu charme, do seu carácter e dos seus segredos. Mas quem é daqui já os conhece tão bem e quem não é que se atreva a conhecer e a descobrir uma cidade que (me) surpreende todos os dias.
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