Nós percorremos os dois espaços, não respeitamos a clivagem. Neste tempo: que é o de sermos pais de uma criança de quase dois anos, trocamos a passada imperial, certa, ordenada, por passos desordenados e correrias. Trocamos a seriedade nos rostos por expressões vivas de emoções que oscilam entre a alegria e o susto.

Este Palácio de Verão é o maior e mais conhecido jardim imperial na China. Tão grande que precisamos de um mapa e ainda assim nos perdemos nos seus caminhos. Ao percorrê-los encontramos a China nos seus diferentes cenários e paisagens (isto faz ainda mais sentido depois de já termos passado por Lijiang e Yangshuo - de onde vos escrevo). É mais água que terra, mais cores que o arco-íris, mais escadas que terreno plano.

Está carregado de escadas e nós tentávamos carregar a Mia através delas mas em vão, de entre as coisas que ela mais gosta: subir e descer escadas ocupam um dos primeiros lugares da lista. Podemos passar partes grandes – dentro das horas – a fazê-lo.

Palácio de Verão, Pequim
créditos: Menina Mundo

À frente os castelos, templos e pontes, pagodes e pavilhões, atrás o lago Kunming, as colinas, os jardins. Há passagens redondas onde damos as mãos e esticamos os braços para o papá passar pelo meio, há patamares que escasseiam entre as mil escadas: fizemos deles patamares dançantes, os vestidos a esvoaçar ao sabor do vento, esse que lhe leva as risadas que ela solta até às colinas, lá longe.

Fomos mais perto, vê-las melhor, parecem sobrepor-se é impossível contá-las, não sabemos se é mais uma colina ou a sombra dela ou a sua repetição - feita dos nossos olhos semicerrados pela luz do sol que começa já a descer. Abracei-as com os olhos, enquanto ela me abraçava e apertava contra ela. Neste, como no Templo do Céu, mantém-se o púrpura da Cidade Proibida e do Lama Temple: nas paredes, portas e colunas; mantém-se o dourado: nas portas e telhados e a antecipar estes últimos há linhas de azul, verde e amarelo – vivos, fortes.

Palácio de Verão, Pequim
créditos: Menina Mundo

Ela gosta das portas e eu gosto da curiosidade que ela traz: no corpo que pulsa para as atravessar; nos olhos que espreitam para o outro lado; nas mãos que as tentam abrir. Afinal é disto que se trata esta viagem, um abrir constante de portas que até aqui estavam fechadas, descobrir o que há do outro lado, ver, com olhos de querer ver, com olhos de querer bem.

Levámos tardes inteiras nestes dois passeios, jogámos às escondidas, nós e as árvores. Contámos segredos, mão na mão, enquanto me baixo para ficar do tamanho dela, para ver como ela vê, dali - porque os lugares são imperiais mas ela continua a ser criança e as suas brincadeiras preferidas são as mesmas, aí ou na China!

E as risadas no Palácio de Verão, aquelas que foram levadas pelo vento até às colinas, fizeram lá ricochete e foram-nos devolvidas à boca neste Templo do Céu. Onde os papagaios de papel se passeiam lá no alto, seguros pelas mãos dos mais velhos, que parecem conhecer bem o vento. Por lá nos passeámos, jogámos à apanhada em caminhos circulares que o templo - mais acima - desenhou.

créditos: Menina Mundo

Conseguem ouvi-la nas gargalhadas fartas? E conseguem ouvir a birra que fez a seguir, sim, uma daquelas de pedir ao céus: para parar. Nós estamos na China, mas (felizmente) ela continua a ser ela, a ser criança, com tudo o que isso implica: maravilhas, encantamento; mas também - porque também fazem parte do crescimento e do desenvolvimento - birras, teimosias, os limites que se testam a cada dia e as negociações que se fazem e refazem. É ela a crescer aqui, deste lado do mundo, e nós a sermos pais, entre templos na terra e céus acima.

No Palácio assistimos à despedida do sol, em tons rosa e lilás. No Templo do Céu para ela foi noite ainda antes do sol descer, num sono que pedimos, nesse lugar onde as preces parecem ter um caminho mais curto até aos ouvidos certos.

Estamos quase a deixar Pequim, vamos para dentro – mais dentro – ver outra China. Da próxima vez já vos falarei de Lijiang.

Este artigo foi originalmente escrito em Menina Mundo