[E se fossemos uma tábua longa, se alguém nos lesse os dias de trás para a frente e nos assinalasse, com tinta permanente, nesse corpo feito de madeira (espécie de biograma ou gráfico da vida), quantas marcas teríamos? Quantas marcas nos contariam?]

Hoje falei com as águas: castanhas-terra deste rio. Fiz-me de silêncio para as ouvir. Fui levada pelas correntes – quieta – no embalo do barco que me deixava entrar nelas, e foi como se aquela pessoa que desde pequeninos olhamos de pescoço esticado – com muita admiração e curiosidade – nos devolvesse o olhar, num abraço. Hoje, em família, abraçamos o Mekong (Mae Nam Khong), esse que é a água mãe, a mãe dos rios, e que acolhe na sua bacia uma biodiversidade que é das mais ricas do mundo.

Podemos estar no Mekong e estar em seis países diferentes. As suas margens e águas são, há mais de 4.000 anos, casa de mais de 300 milhões de pessoas, com heranças culturais distintas, diferentes crenças, tradições, dialectos e diferentes formas de interagir com o ambiente e de utilizar os recursos naturais do mesmo. Este rio atravessa a China, Myanmar, Laos, Tailândia, Cambodja e o Vietname. Entrámos neste último, em Ho Chi Minh, e sairemos já no Cambodja, Phnom Pehn é o nosso próximo destino.

Pelas margens vamos descobrindo nuvens, árvores, casas e uma vaca. A Mia adora vacas e, por isso, desviei-lhe a atenção para a margem:
- Mia, olha para ali. – Querem saber o que viu a Mia?
- É uma vaca, uma vaca a passeaie (passear) nas nuvens.
E foi com esta imagem, e com um denunciado sorriso, que avançamos.

O misterioso rio Mekong
créditos: Menina Mundo

O céu azul, de nuvens desenhadas, deu lugar à chuva. Chovia, chovia, chovia tanto que parecia querer chover tudo nesse dia. Foi debaixo dos trovões, que saímos do barco e, pés na terra, sentimos o chão abaixo de nós abanar e o seu som que abafava todos os outros sons. Acalmou durante o almoço. Entrámos nos botes e já neles pelos canais estreitos do delta do Mekong – é nestes barcos e nestes canais que mora o Mekong que o nosso imaginário tão bem guarda. A Mia ia-me nos braços, e entre ela e o Mekong há o mesmo castanho: pelos olhos, pelos cabelos; e há a mesma vontade de trazer terra consigo, de se fazer de todos os lugares por onde passa. [Lembrar-me-ei sempre disto].

O misterioso rio Mekong
créditos: Menina Mundo

Voltámos ao barco maior para descobrirmos que este rio é uma rua cheia: de casas. Estamos no nosso barco para visitarmos uma aldeia flutuante e uma “quinta” de aquacultura. Vemos crescer casas da água e as rotinas de quem as habita: a roupa está estendida, um pai dá banho à filha com a água do rio; um homem gargareja, dessa água, para depois a cuspir e devolver ao rio; outros estendem a sua rede para apanharem o peixe do dia, enquanto outros tantos consertam as tábuas dos seus barcos.
Entre estas casas há uma que nos desperta maior atenção, é feita de um azul água – como a água deste rio não é -, tem um alpendre que convida a conversas e podemos ver, ainda que ao longe, um senhor acomodado no hammock avermelhado que o alpendre tem. Nos beirais são os vasos e as flores que enchem a fachada da casa e convidam a entrar. E à porta: um barco. Há sempre um barco a cada porta desta aldeia piscatória: são os seus pés, as suas pernas.

O misterioso rio Mekong
créditos: Menina Mundo

E será de barco que eles vão ao mercado flutuante de Cai Rang (Chau doc). Aqui há uma casa em cada barco e há um negócio, onde se empenha a família toda. Vendem ananás, melancias, pomelos é ali que se encontram os locais para as suas compras, é o hiper-mercado desta região do Mekong. É um mercado feito pelos locais, para os locais, mas todas as manhãs decorre sob o olhar atento dos viajantes que atravessam o Mekong, na vontade de conhecerem o dia-a-dia dos que ali: vivem, crescem, lutam.

As águas levaram-nos a uma aldeia habitada por uma minoria étnica, o povo Cham. Saídos do barco, atravessámos uma ponte estreita, de madeira, que nos levou a um chão de terra batida. Entre este chão e as casas há estacas de madeira que sustentam estas últimas e as suspendem, lá em cima. Entrelaçados a estas estão paus de bambu que pegam – em peso – nas crianças dali, que se penduram, cabeça para baixo, enquanto soltam gargalhadas cúmplices.

O misterioso rio Mekong
créditos: Menina Mundo

Nesse espaço, entre a terra e as casas, espalham-se salas de estar e mesas de almoço, de jantar. Moram jogos de berlinde, galinhas, cabras, e mora também – com razão – o medo das cheias, falo-vos já dele.

Foi ali, com as crianças dali, que a Mia conheceu o jogo do berlinde, foi ali que ela segurou o seu primeiro berlinde – o que os meninos lhe emprestaram – e o lançou. Ali, numa margem do Mekong, ela viu a perícia com que lançavam os berlindes e ouviu os sorrisos barulhentos, sempre que acertavam num outro berlinde. [Lembrar-me-ei sempre disto].

E nesse espaço, onde moram brincadeiras de criança, mora (com razão) o medo das cheias porque às vezes, debaixo dessas casas, vem morar o Mekong. Os habitantes desta aldeia construíram-lhe uma tábua, é uma tábua central que se vê mal acaba essa ponte de tábuas incertas. Nessa tábua, envelhecida pelas águas, pelo sol, pela humidade dos dias, todos podem lembrar as cheias do Mekong, a sua história em datas, as datas em que se juntou à chuva para ganhar a terra e levou parte dela para a espalhar pelas suas águas, para serem ainda mais castanho-terra.

Era aqui que estava quando vos comecei a contar estes três dias de Mekong, de frente para esta tábua, a pensar: se fossemos uma tábua longa, se alguém nos lesse os dias de trás para a frente e nos assinalasse, com tinta permanente, nesse corpo feito de madeira quantas marcas teríamos? Quais as datas que nos contam; que contam a nossa história? Aquelas em que transbordamos como esse rio, em que saímos: porta fora, corpo fora, pele fora; aquelas em que voltamos e connosco – ou em nós – trazemos mais alguém, como o que o rio leva com ele, sempre que toma mais uma margem. Ou aquelas em que voltamos e connosco vem um vazio, vimos metade do que éramos, metade do que fomos, aqueles em que nos morreu – ou matamos em nós – alguém, algo nosso, um sonho que nos acompanhava.

O misterioso rio Mekong
créditos: Menina Mundo

Algures, na tábua que somos, está esta subida do Mekong – escrita a letras fortes e grossas; algures, na tábua que nos conta, está esta viagem, da mesma forma que está nas linhas que trazemos nas nossas mãos.


As viagens pelo Mekong podem ser de: um, dois ou três dias, ou de uma semana, pode haver um regresso ao ponto de partida - Ho Chi Minh, no nosso caso, ou a entrada no Cambodja, neste caso a viagem será sempre de três dias, foi esta que fizemos. Cai Be; My Tho, Ben Tre, o mercado flutuante de Cai Rang e Chau Doc – foram alguns dos pontos de passagem nesta nossa subida do Mekong.

É cansativo, os dias começam às 6h da manhã para as viagens começarem às 7h. Trocamos de barco várias vezes. Entre saídas e entradas, para as várias visitas, íamos guardando cansaço em nós, e a Mia ia alternando entre curiosidade para ver o capitão de água doce, amizades que cresciam no chão do barco e sonos que duravam o tempo de mais uma deslocação, até à próxima visita. Vimos uma colmeia de abelhas, provámos geleia real e chá com mel. Visitámos mercados flutuantes, o templo Vinh Trang e o templo no alto da colina da montanha Sam. Provámos sapo e cobra, recusámos o rato. Vimos como são feitos os noodles, a partir das folhas de arroz que secam ao sol, e o processo para a doçaria a partir do coco. E descobrimos que uma das actividades preferidas da Mia é alimentar peixes e porquinhos da índia. Portanto, é cansativo, sobretudo com uma criança.

Algumas das visitas estão claramente formatadas para entreter turistas, porém, noutros momentos, como a visita à aldeia do povo Cham e ao Mercado flutuante Cai Rang, percebemos que estamos a acompanhar-lhes o dia-a-dia, que segue igual, sob os nossos olhos. O balanço é muito positivo e mantém-se a certeza, uma passagem pela Ásia sem o Mekong valeria metade, menos de metade.

Este artigo foi originalmente publicado no blogue Menina Mundo.

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