Reportagem Martín Raschinsky / AFP

A emblemática indústria do livro argentina tem sofrido com o severo ajuste fiscal empreendido pelo ultraliberal Milei desde dezembro para conter uma inflação anual de quase 290%, num momento em que metade da população se encontra abaixo da linha da pobreza.

"Em janeiro, as livrarias falavam-nos de um declínio anual nas vendas de 20%, em fevereiro já era 25% e em março quase 40%", disse à AFP Juan Pampín, presidente da Câmara Argentina do Livro e diretor da editora Corregidor.

Federico Giménez, da editora Ciccus, lembrou que a desvalorização de 50% do peso argentino em dezembro encareceu o preço do papel, que é dolarizado e controlado apenas por duas empresas, contribuindo para o aumento dos preços.

No setor de vendas ao público, o panorama é semelhante, e os comerciantes desdobram-se entre os aumentos para tentar manter a clientela, mesmo nos bairros mais caros de Buenos Aires.

"As vendas caíram muito, há clientes que antes vinham com mais frequência. Agora perguntam, mas não levam", comentou à AFP Santiago Martínez, dono da livraria El Gato y la Luna no bairro de Núñez.

Os livros custam cerca de 20 dólares, em comparação com um salário mínimo de cerca de 200.000 pesos (225 dólares).

Atritos políticos

Além da queda acentuada nas vendas, os organizadores da Feira do Livro acusaram o governo de atacar a cultura e não financiar a 48ª edição deste encontro anual.

Alejandro Vaccaro, presidente da Fundação El Libro que organiza a Feira, criticou na inauguração, a 25 de abril, o "ataque impiedoso contra a cultura" por parte do governo de Milei, enquanto a escritora Liliana Heker questionava no discurso de abertura: "Faz sentido celebrar esta nova edição da Feira do Livro num país onde a pobreza e a indigência crescem a cada dia?".

Um dos pontos altos deste ano era a apresentação do 18º livro de Milei, "Capitalismo, socialismo e a armadilha neoclássica" (Planeta), num evento ao género de um "show", com ecrãs gigantes.

Mas o presidente cancelou na quarta-feira o espetáculo previsto para 12 de maio e acusou os organizadores de "hostilidade" e "tentativas de sabotagem".

Em resposta, Vaccaro disse na quinta-feira à Radio 10 que o cancelamento se deve na realidade à impossibilidade de cumprir os pedidos exagerados feitos pelo presidente: "Eles pediram-nos cinco mil entradas gratuitas". A Presidência rejeitou esta afirmação e uma deputada qualificou a feira como "esquerdista".

Os atritos entre a Feira do Livro e o governo começaram quando este decidiu não instalar o habitual stand da secretaria de Cultura no evento, alegando cortes de gastos.

Milei adiou a apresentação do livro para 22 de maio no estádio Luna Park, com capacidade para cerca de oito mil pessoas.

Tradição literária

Ezequiel Martínez, diretor geral da Fundação El Libro, disse à AFP que os organizadores não estão em condições de "assumir a segurança e tudo o que implica a visita de um presidente". "É a primeira vez que um presidente em exercício iria apresentar um livro", precisou.

No entanto, "a feira não depende de Milei vir apresentar o seu livro", acrescentou o organizador do encontro, que conta com 1.500 expositores de 40 países.

A Feira do Livro de Buenos Aires, que termina a 13 de maio, é um dos eventos literários mais importantes do mundo hispânico.

"A indústria argentina foi a primeira na América Latina a começar a fazer traduções, o que fez com que, por exemplo, deixasse de se usar o neutro nas edições e incorporasse termos mais latino-americanos", detalhou Pampín, destacando a importância regional do setor.

"Isso depois foi copiado, no melhor dos sentidos [...], por Chile, México e Colômbia, entre outros países", continuou Pampín.

"A Argentina tem, de longe, a maior quantidade de livrarias por habitante da América Latina", assegurou, estimando que na cidade de Buenos Aires existam entre 1.000 e 1.200.